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A arte do possível

Florentino Beirão - 10/02/2016 - 15:54

Quando os martirizados sírios vagueiam por essa Europa fora, sem destino, com arame fardado em várias fronteiras, espoliados dos seus bens e mal nutridos. Quando a Europa, numa anemia económica, afrontada com o desemprego e com o terrorismo, desavinda, não encontra o seu norte. Quando a China, Brasil, Angola, Venezuela dão sinais de retrocesso nas suas economias, com o petróleo em fanicos. Quando, no meio desta conjuntura depressiva, nos aparece um mosquito maléfico a meter-se gravemente com as grávidas. O povo da Lusitânia encontra-se empenhado, com todas as suas energias, na construção de um novo e atrasado Orçamento do Estado, a grande questão do momento.

A política caseira, ao longo de semanas, aqui tem concentrada a sua atenção, dando os seus palpites. Televisões, internet, revistas e jornais, estrategicamente, já colocaram os seus homens de mão, na defesa dos seus pontos de vista. Para a direita, trata-se do maior assalto aos bolsos dos contribuintes. Para a esquerda, tudo se justifica, graças aos apoios que vão ser revertidos a favor da classe média e dos mais pobres da sociedade.

Na verdade, do que se trata afinal?

Após um longo e intenso processo negocial com a Comissão Europeia, o primeiro - ministro António Costa, deu conta ao país dos resultados obtidos, junto dos burocratas da União Europeia. Ficámos então a saber que, por um fio, o país se tinha libertado da humilhação que alguns políticos da direita chegaram a almejar, tanto no país, como em Estrasburgo. Contas feitas, o Pacto de Estabilidade e Crescimento acabou por se encontrar cumprido pelo Governo, sem grandes dramas. Apesar das cirúrgicas cedências à Comissão, por parte de António Costa e Centeno, os partidos que apoiam o PS, embora irritados, lá foram engolindo em seco.

O virar da página, prometido nas eleições, pode ainda esperar um pouco. O realismo acabou por levar a melhor, face a algumas promessas que vão ficando escondidas no bolso. Deste modo, a austeridade continuará a ser a nossa companheira de viagem, embora com uma ou outra face, consoante o ângulo de vista. A arte do possível que caracteriza a democracia levou a melhor. Aliás, o primeiro - ministro reconhece que a versão inicial do Orçamento do Estado era melhor antes da intervenção da Comissão Europeia, do que a que se viu obrigado a engolir.

Costa, como político inteligente e hábil, com este Orçamento, tentou jogar, ao mesmo tempo, em vários tabuleiros.

Aos partidos que lhe dão cobertura parlamentar, Bloco e PCP e PEV ofereceu-lhes, entre outras exigências, o aumento de impostos sobre a banca, pagamento do IMI ao imobiliário, devolução de salários e pensões e ainda cortes na sobretaxa do IRS. Mas, por outro lado, nas negociações com Bruxelas, foram aceites novos impostos, como a tributação sobre os combustíveis, as compras de veículos, o tabaco, as bebidas alcoólicas e o acesso ao crédito. O corte da TSU para os trabalhadores, com salários inferiores a 600 euros, acabou por ficar adiado. Finalmente, a entrada apenas de um trabalhador, por cada dois que deixarem de trabalhar para o Estado.

"O realismo acabou por levar a melhor, face a algumas promessas que vão ficando escondidas no bolso"

Destes avanços e recuos, poderemos extrair algumas lições.

Ao longo de duas semanas, a narrativa de uma grande parte do país focava-se na convicção de que o novo governo teria muita dificuldade em fazer passar o seu primeiro Orçamento de Estado, face a Bruxelas e às agências de rating. A partir de agora, o discurso está a mudar. Já que passou, o governo é acusado de arrasar o país com mais impostos. A teoria do copo meio cheio, meio vazio, serve para tudo. A volubilidade dos comentadores e políticos chega a ser surrealista. Obrigados a revelarem a sua opinião para encherem as televisões e os jornais, conforme o vento dos acontecimentos muda, assim se vão adaptando. Em vez de falarem do presente, preferem fazer contínuos prognósticos para o futuro que quase nunca bate certo com os seus desejos, interesses pessoais ou de grupo.

A abertura à alternativa, com humildade e sem dogmas, é o que define a modernidade. Aceitar viver em democracia, a arte do possível, será apostar em permanentes alternativas. Entre o erro e a verdade de cada momento. O contrário são governos de ditadura que nos dispensam de pensar a política. O salazarismo já nos devia ter vacinado.

 

 

 

 

 

 

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