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Cata Ventos: Fazendo contas a catástrofes

Costa Alves - 02/11/2017 - 10:05

Estive a fazer contas e um ano brotou iluminado: 1987. Conhecer o Laboratório de Estudos sobre Incêndios Florestais que o Prof. Xavier Viegas tinha montado na Lousã e dar voltas por Arganil, Mata da Margaraça, Serra do Açor. Objetivo: escolher sítios para a instalação de torres de vigia e associar o então Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica à problemática dos incêndios florestais. Já há trabalho sobre índices de risco de incêndio e abrem-se caminhos para a sua modelização físico-matemática. Em 1987, estamos na infância desta arte.
Já revelei aqui alguns destes dados: 1985 (14 mortos; todos bombeiros); 1986 (16; 13 bombeiros); 1991 e 1995: o vento leste voa indiferente a quem corre a ver se o apanha. A floresta arde e nenhum governo tem olhos para o futuro. Representam-se “bons sentimentos” e a habitual queixa do “só neste país!” Tudo volta ao que era.
1991: a onda de calor mata mil pessoas por excesso de exposição, mas só em 1999 iremos conhecer o estudo do médico Marinho Falcão. Na altura, as ondas de calor não constam no caderno de riscos a que o país está sujeito. Parêntesis: na prática, ainda hoje não constam, tanto na prevenção como no socorro.
1998: é possível sonhar com uma proteção civil finalmente “civil”, depois da tempestade de chuva que matou 11 pessoas no concelho de Beja, em 5 novembro de 1997 (o Instituto de Meteorologia entra neste dia, pela primeira vez, no então Serviço Nacional de Proteção Civil dirigido por militares). Em janeiro, a Meteorologia passava a ter um representante permanente para as decisões em situações adversas. Batismo de fogo: 10 dias para matar o fogo de Vila Velha de Ródão; cenas grotescas de secretário de Estado a substituir comandante de bombeiros, a fazer de bombeiro e a recorrer ao então presidente da Proteção Civil para assassinar aquele fogo com a mais feroz artilharia.
Entre 1998 e 2001: o sonho tem asas, parte alguns muros, floresce aqui, além não, abre caminhos, outros são soterrados. O que deve continuar a mudar é uma grande motivação. Há trabalho para anos e anos.
2003: uma intensa onda de calor coloca o país como agora; transido de dor e aflição perante 426 mil hectares queimados, 21 pessoas neles achadas mortas e a calamidade invisível, que retira da vida 1953 pessoas por causas relacionadas com o calor extremo. Escoadas as lágrimas da circunstância, tudo volta à estaca zero da resignação.
2005: o mesmo cenário de fustigação, mas a repetição torna-nos quase indiferentes; a rotina da dor banaliza a dor. 339 mil hectares.
2006 (6 mortos); 2009: 1000 por excesso de calor - ninguém liga; 2012: 6 mortos, 4 são bombeiros; 2013: 1684 mortos e 9 nos incêndios – não há clamor nacional; 2016: em julho, saem prematuramente da vida 647 pessoas; por calor extremo, mas não publicam mais dados nem ninguém se interessa. Não são telegénicos; os fogos dão telenovelas infindáveis e os atingidos pelo excesso de calor, dão silêncio.
A imensa e extrema catástrofe deste ano é da mesma família das que citei. Como nunca as pensaram com olhos de futuro, não poderiam evitar a mais agravada que hoje nos horroriza.
Começa agora a definir-se um rumo e apresentam-se medidas. Vamos ver se haverá substância, conhecimento, metodologias, determinação, coerência e caminhos que persigam o bem comum. Veremos como vamos reagir às dificuldades, ao choque de interesses que se vão interpor. É uma realidade muito complexa. Teremos de ser muitos a fazer pressão. O futuro julgará.

mcosta.alves@gmail.com

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