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Cata Ventos: Fantasmas da Lusofonia

Costa Alves - 24/05/2018 - 11:01

Aos oito anos ouço o rufar dos tambores que acompanham a banda sonora do mito da lusitaneidade, mas é no Liceu Nun’Álvares que vou sentir-me devorado por ele. Com dez anos, chamam-me “lusito” de uma dita Mocidade (“Mocidade”?) Portuguesa e enfiam-me dentro de uma farda com o S de Salazar ferrado no cinto. Durante as tardes de sábado e 4ª feira, faço de soldadinho de ordem unida e continência em guarda de honra a reitor, governador civil ou ministro que condescenda, benévolo, uma vez por festa, em descer à pobre cidade provincial. 
Em 1956, vejo-me a marchar em frente da sede do Governo Civil contra a “Rússia” (não diziam União Soviética) que acaba de invadir a Hungria para esmagar a insubordinação liderada por Inre Nagy. Das razões de estar ali nada sei e não procuram que saiba. Transformam crianças em coral de desígnios alheios e tão longe está esta guerra, a que nos querem fazer acorrer, que bem parece a guerra a quem está longe dela. O feitiço acaba por virar-se contra o feiticeiro e a prova está em que estas linhas não dispensam o tracejado da sua evocação; tal é a força do que a memória regista. Na hora devida, já os anos de 1960 espalham as suas faúlhas libertárias, haverei de saber como aquela insurreição húngara foi exemplar e comprovava os malefícios que o estalinismo andou a fazer.
Dizem-me, nesse então, que na Lusofonia reside a raiz do nosso falar, o pulsar iniciático da nossa existência como povo e cá vamos cantando e rindo, bandeiras ao alto em honra de Aljubarrota e da Restauração com loas a um tal Viriato que terá desencadeado este nosso tão egrégio marchar até aqui. No entanto, venho a sabê-lo depois, nada de mais contestável. 
Não é fácil determinar quando entra no imaginário nacional a nossa ligação a uma etnia que habitou algures em regiões do Interior, entre o Douro e o Tejo com extensas penetrações pela Extremadura espanhola e episodicamente pela Galécia. Se Camões lhe confere expressão épica com “Os Lusíadas”, é porque já teria emoldurado pendões em Tóro, Salado e Atoleiros; quem sabe se em Aljubarrota e outros chãos da nossa fricção defensiva com Castela. 
Mas há muitas dúvidas sobre a origem de uma população que terá vindo das montanhas helvéticas e já habita na região no século VI aC. Os Lusitanos serão portadores de uma língua indo-europeia que evolui pelo tronco celtibérico e afastando-se do celta ancestral.
Na realidade, é no quadro de um território romanizado que vai processar-se a evolução que desembocará no nascimento de uma nação e de um país português de fala latina e religião cristã maioritária. Uma nação que, assinala Oliveira Martins, terá sido criada a partir de três nacionalidades: a galega (“onde corria muito sangue suevo”), a céltica da Lusitânia e a turdetânica (“onde corria muito sangue berbere”). A afirmação e a evolução da portugalidade não abrigam nenhum dos conteúdos de afirmação específica destas etnias, ou nações, designadamente da lusitana. 
Antes pelo contrário, constrói-se apesar deles, contra eles, dissolvendo-os ou descaraterizando-os no espaço que ocupam no interior do futuro espaço português. Nem há vocábulos de utilização lusitana que tenham deixado impressões na nossa língua. Apenas subsistem vestígios de alguns castros que sobreviveram à sanha romana e que celebram sugestões a sua excelente engenharia de fortificação. 
Lusofonia será, então, a legenda de uma lenda e, mesmo instalados no equívoco, seguimos um destino “lusófono” com expressão em todo o mundo.
mcosta.alves@gmail.com

 

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