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Cata-Ventos: Pontualidade e Impontualidade

Manuel Costa Alves - 03/02/2016 - 16:23

Há uns anos, alguns comandantes de bombeiros, cansados de esperar mais de uma hora pelo início de uma reunião com um secretário de Estado, resolveram abandonar o local e regressar aos seus afazeres. A comunicação social tocou no assunto e carregou nas tintas à velha maneira de, pontualmente, pôr a ridículo o poder político. A questão ficou, claro está, a marinar nas águas paradas do costume. As reuniões, as cerimónias, as visitas, as conferências, as sessões de diverso tipo continuaram a ter lugar com os seus funcionários atrasos. 
Para a história da minha perceção da impontualidade, recordo a justificação pública do grande e proverbial atraso de quem ia presidir a uma sessão evocativa de um importante e simbólico acontecimento: a transmissão televisiva do jogo do seu clube de futebol. Desesperada de esperar, a audiência pasmou e calou. 
Outra cena expõe a mulher de um altíssimo representante do Estado a recordar a praxe da impontualidade para lhe aliviar a preocupação pelo muito atraso numa cerimónia a que ia presidir. 
Em contraponto, uma lição com parecenças com a dos bombeiros.

"Todos conhecemos casos de dirigentes com altos cargos que fazem gala em fazer-se esperar, como que reforçando a importância em que se têm e que os golpes da (des)fortuna muitas vezes deixam durar muito"

Uma alta autoridade costumava chegar quando chegasse e a sessão só começaria então. Nesse dia, constituída a mesa, o coordenador comunica a concessão de dez minutos de tolerância ao atraso da alta autoridade. Contrariando a aflição dos companheiros de mesa, a sessão começaria dez minutos depois com o lugar que lhe estava destinado a agigantar-se na cadeira vazia. Meia hora depois, chegou e, sorrateiramente, não sei se zangado se envergonhado, sentou-se no lugar que, em silêncio, lhe foi apontado. O futuro disse-me que não lhe serviu de lição.
Todos conhecemos casos de dirigentes com altos cargos que fazem gala em fazer-se esperar, como que reforçando a importância em que se têm e que os golpes da (des)fortuna muitas vezes deixam durar muito. 
O pior é que a doença pega-se a todos nós. Marcamos várias tarefas para o mesmo minuto criando a sensação de que o mundo desaba, se não o fizermos. As filas indianas serpenteiam pelas florestas da nossa impaciência e a pontualidade é medida pela prontidão com que damos prioridade ao telefone móvel quando toca. Telefone móvel desligado, quando estamos ocupados, é ofensa à consideração em que o temos.
A impontualidade é mais uma faceta do nosso modo de estar na vida. Quanto mais nos fazemos esperar, mais tentamos confirmar a sensação de que somos únicos e imprescindíveis, de que aquilo que vamos fazer, tarde e a más horas, ou fulminantemente em cima do joelho, não poderia realizar-se sem nós. A impontualidade é uma euforia do tarefismo e um desprezo do(s) outro(s).
De resto, os gabinetes dos dirigentes são o exemplo dos antiexemplos. Uns acantonam-se no canto do bocejo, outros afadigam-se em busca de um papel que não aparece. Os afazeres são para toda a hora e para hora nenhuma. Uns têm cinquenta tarefas acumuladas num instante; outros, com ou sem trabalho distribuído, escondem-se atrás das cortinas de tarefas inventadas. 
A impontualidade é um vício e uma regra de etiqueta que impomos, ou suportamos, como se se tratasse de uma benevolente e generosa doação de quem a ela se julga com direito. É um modo de fazer e não fazer, de exibir falta de rigor e desgosto por ter de respeitar compromissos. Aparenta um fervilhar de ativismo mas é um desprezo pela organização do trabalho e dos seus tempos de execução. A impontualidade é uma improdutividade e um convite público à improdutividade.


mcosta.alves@gmail.com

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