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Crónica: Debita nostra XCI

Luís Costa - 12/07/2018 - 11:08

…”contrariamente ao que por vezes se ouve, o crescimento do populismo europeu não se explica por qualquer fluxo de imigrantes. A verdade é que o número de migrantes a entrar na UE era muito maior antes da crise financeira (1.2 milhões por ano entre 2000 e 2008). Os números entretanto colapsaram (500.000 por ano entre 2008 e 2016) quando a situação geopolítica exigiria maior abertura.” (Tradução livre de T. Piketty, Towards a union in the union, blog.lemonde.fr, 03-03-18).
Há uma pergunta que não pode deixar de colocar-se, a propósito das relações entre liberalismo e democracia: porque é que os paladinos do comércio global, podendo pressioná-la, demonstram tão pouco empenho na universalização da democracia?!
Talvez porque o exercício da cidadania constitui um forte obstáculo à produtividade baseada na depreciação do trabalho. Assim, em pleno mercado, o “dumping” (subvalorização) social e político pode garantir iniludíveis ganhos económicos, para mais, se legitimados na geral contenção dos preços e numa periférica melhoria das situações de vida.
Mas também, com a deslocalização da atividade produtiva, uma acrescida pressão sobre os centros democráticos e os fatores de cidadania neles tão arduamente conseguidos. Tanto mais, quanto estes continuam bastamente apelativos a migrações que aí compensam o “inverno” demográfico e a menor propensão para a moda da precariedade. Estão assim reunidas as condições para que erros que a História já registou como tragédia, possam vir a retornar, numa outra escala, pelo menos como farsa. 
As tradicionais nacionalidades encontram-se hoje muito mais expostas e ressentem-se não só do défice demográfico que lhes sorve os herdeiros, como do afogo económico que os deserda, lhes tolhe os hábitos ou lhes cancela promissórias.
E a ameaça que as atira para o aconchego da identidade cabe, como sempre, ao ‘outro’ (não idêntico) que lhes mora ao lado ou lhes chega agora pelo cabo do televisor, provavelmente ampliada pela própria globalização do terrorismo. Com a agravante de que as profecias sociais têm sempre o condão de se cumprir.
Só que, estando os encargos com a imigração muito desigualmente distribuídos, nem por isso são os mais acolhedores os aterrorizados, mais ou menos à mercê de uma segunda descuidada integração, a quem primeiro chegam as sobras da precariedade. 
Por outro lado, não consta que o fenómeno imigratório, legitimado pela mesma lógica do total (recíproco) ‘desprotecionismo’, tenha vindo a crescer. A não ser na proporção por que o toma (amplia) esta fobia redentora que lhe renega as vantagens, lhe elege os carrascos e lhe criminaliza o apoio, desafiando à objeção de consciência.
É que, ao rol dos enjeitados, pertencem não só os que genericamente procuram melhor vida, sempre limitáveis à objetiva contingência da integrabilidade, como ainda os que fogem às guerras e outros atropelos de que frequentemente nos (des)responsabilizamos.
Aqui, renegando os nossos mais apurados valores civilizacionais.

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