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Crónica: Debita nostra XLVII

Luís Costa - 20/10/2016 - 9:42

Por outras palavras, vemos aqui a maior parte das crianças atingir a idade adulta, ou morrer de tenra idade, segundo a condição ou profissão a que pertencem, e em todas as épocas da vida os primeiros a manterem vantagem sobre os segundos. (…) Com efeito, enquanto metade das crianças nascidas na classe dos fabricantes, negociantes e diretores das fábricas, atingirá vinte e nove anos, metade dos filhos dos tecelões e dos simples trabalhadores da fiação teria cessado de existir, queremos crer, antes dos dois anos feitos.” (Louis-René Villermé, Estado físico e moral dos operários, 1839, pp.89).
Imbuído de uma perspetiva liberal, L. Villermé fora chamado, bem como E. Buret, a fazer um estudo sobre a situação que então se vivia na indústria manufatureira, em França, prevenindo a sua instrumentalização por “reacionários monárquicos” ou por agitadores “revolucionários”.
Pôde, assim, mais do que aquele, ver o seu trabalho reconhecido pela “Academia das Ciências Morais e Políticas”, que incarnava o espírito da época, e fazer uso de um instrumento de medição que ainda então se aprimorava, a Estatística.
Sabemos como esta foi posteriormente abusada, tornando-se objeto das mais espirituosas apreciações, como a de que “qualquer número, desde que bem torturado, acaba sempre por confessar”. Apresentava, porém e desde logo, uma decisiva vantagem: trazia à evidência grandes traços sociais que, até aí, podiam sempre aparecer obscurecidos, ao olhar mais imediato, ou ao senso comum, por situações individuais que os podem contraditar. 
Ficava claro que nem todos os meninos nascidos para o trabalho das fábricas morreriam até aos dois anos de idade. Mas uma coisa se tornava também irrecusável, por obra de um insuspeito Villermé: ou a mãe-natureza distribuía os tempos de vida em conformidade com a condição social (e os grupos de profissão, onde se incluíam as crianças), ou então havia fatores socioprofissionais que, genericamente, alongavam ou tolhiam a sua esperança de vida.
Estando-lhe vedado, pelo seu próprio ângulo social de observação, aceitar que a economia corrente era um discreto agente necrológico, o que é certo, é que Louis de Villermé se confrontava com uma efetiva mortalidade social. Para a qual nem seria difícil apurar outros fatores, uma vez que, como reconhecia, “em todas as épocas de vida”, se podia verificar a “desvantagem” dos sobreviventes.
Louis-René fê-lo, não deixando de escrutinar outros elementos de ordem social e moral que só podiam agravar a cumulativa pobreza dos esforçados trabalhadores de 6 e 7 anos de idade (DEBITA NOSTRA VIII). Pouco consciente de que, no mesmo gesto, refutava o célebre pressuposto de um tendencial equilíbrio entre vantagens e desvantagens da teoria económica de Adam Smith.
Cujos próceres, no seu conceituado “realismo”, se confrontavam agora com um dilema. Por um lado, o morticínio acabaria, a médio prazo, com “a galinha dos ovos de ouro”. Por outro, sendo as criaturas dispensadas de trabalhar, como se poderia fazer face à concorrência?! 
E ainda o conhecido “must” não obrigava então a competir com as crianças do Bangladesh!...

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