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Crónica: Debita Nostra XLIII

Luís Costa - 25/08/2016 - 8:49

O que aqui está em causa é a conceção meramente abstrata de liberdade, que não tem conta as capacidades (poderes) que a condicionam e que, ainda assim, quer ir a jogo.

A Inglaterra mantém há mais tempo que nós a guerra social da indústria; conta, assim, com um maior número de feridos e mortos! (…) … a grande propriedade e a exploração por grandes firmas condenam-no (trabalhador) à incerteza, que é o flagelo da indústria, e a concorrência dos jornaleiros entre si, por trabalhos que não requerem qualquer qualificação e somente o uso da força, mantêm os salários bem abaixo do nível das necessidades.” (tradução livre de Eugène Buret, “De la misère des classes laborieuses en Angleterre et en France, 1840, pp. 238-239).
Passados 50 anos sobre a divulgação da teoria económica de Adam Smith, eram já bem visíveis os seus efeitos, sobretudo na Grã-Bretanha, mas também noutros países em vias de industrialização. Ou os resultados da vaga social que a inspirara e ajudara a libertar, uma vez que, nestas coisas, o plausível é a circularidade da relação de causa/efeito. 
Ora, o mais deslumbrante de todos esses efeitos foi certamente o da “ilimitada expansão do volume de bens materiais” que a rompante revolução industrial acabara de suscitar. A precariedade social que a acompanhava apenas surpreendia pela sua concentração, já que era um lugar-comum em toda a precedente história humana.
Mas vinha questionar a razoabilidade da lógica de Smith. Em particular, a ideia de que “a perfeita liberdade” conduziria a uma maior igualdade, mercê da tendência para o equilíbrio, entre vantagens e desvantagens, tanto na procura do trabalho como na do capital (DEBITA NOSTRA XLII). 
Os desequilíbrios eram bem visíveis, expondo ao ridículo o pressuposto de que, nisto do trabalho, quem não está bem (desvantagem) muda-se. E alimentando a controvérsia, comum a todos os debates (ideo)lógicos, sobre se se fora longe demais, ou se se ficara ainda aquém, a aguardar pelo advento da tal “perfeita liberdade”. O que, naturalmente, tem muito mais de “ideo” do que de “lógico”.
O que aqui está em causa é a conceção meramente abstrata de liberdade, que não tem conta as capacidades (poderes) que a condicionam e que, ainda assim, quer ir a jogo. Como alguém que, farto das regras que ainda limitam a “liberdade” desportiva, decidisse abrir aos clubes distritais uma sempre apetecível Liga dos Campeões. 
E que tal abstração tenha tido a capacidade (poder) de se instalar no senso comum. E que por aí apareça renovada, sempre que se desvanecem, na memória histórica, as dramáticas sequelas dos seus devaneios anteriores.
É que o mito de Adam Smith veio de facto agravar, com um fatalismo ideológico, a precariedade dos mais fracos. Enquanto, até aí, a sua situação era o inevitável resultado de uma determinada condição social, passou, sendo agora “livres”, a ser vista e legitimada como a direta consequência da uma (in)capacidade pessoal. Tal como o êxito dos seus concorrentes.
E, passados alguns anos, tínhamos instalada entre nós uma “guerra social” sem precedentes. Com um alarmante “número de feridos e mortos”, em sentido literal. Como adiante se verá…

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