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Crónioca: Debita Nostra LXXXVI

Luís Costa - 03/05/2018 - 10:13

É difícil imaginar melhor forma de autoritarismo do que chamar para o seu lado a “realidade”. (…) que não é realidade nenhuma, mas um quadro político e ideológico que devastou a alternativa política na Europa, reforçou o populismo, abriu uma crise em todos os sistemas políticos e, acima de tudo, tirou o poder às pessoas e empobreceu-as.” (Pacheco Pereira, Público, 17 de março de 2018).
Recordo sempre, quando se trata de fazer escolhas, uma conseguida rábula do pioneiro programa “Zip, Zip” (1969). Perante o delírio da assistência, o turista alemão Herr Ftriz (Raul Solnado), proclamava a sua convicção na existência de liberdade de imprensa em Portugal: “cada um compra o jornal que quer!”.
Vem isto a propósito da relação entre os populismos e o funcionamento da democracia, originalmente idealizada para o desempenho político de pessoas satisfatoriamente livres. Sobretudo da democracia que temos vindo a dar a conhecer às novas gerações, apertadas na estreita malha de uma vulgar e condicionante precariedade (DEBITA NOSTRA LXXXV). Agora já não tanto pela circunscrição da sua capacidade de escolha, mas pelo que lhes é dado a escolher e que alguém já caricaturou como sendo “o cobrador do fraque”. 
Não porque não seja legítima a convicção do caráter intocável da atual ordem internacional ou qualquer outra mais ou menos dramática crença no “fim da história”. Mas pelo que elas podem significar de negação da própria história, de rasouro de eventuais alternativas e de consequente défice democrático. Que nem precisa de ser repressivo, desde que, no monopólio do senso comum, tenha açambarcado o acesso à “realidade”.
Com efeito, veio-se alegremente industriando a ideia de que, nas opções governativas, se trata da escolha entre diferentes exercícios técnicos para a inevitável obtenção dos mesmos resultados políticos. Mas, em contrapartida, numa linguagem que se esquiva à mais consentânea neutralidade. 
Tal são os “resgates”, as “ajudas”, os “ajustamentos”. E, fundamentalmente, uma lógica que, após quase três séculos de desbotadas reincidências, recuperou uma aura de “modernidade”. Onde, à semelhança do evolucionismo, colocou no “status quo”, nas suas geométricas disparidades e aritméticas liberdades, o cúmulo do progresso, a que apenas se poderia obstar evocando os fantasmas do “passado”.
Assim se vêm, os iniciados na “democracia”, desencontrando do elã mobilizador que lhe daria a pressuposta oferta de diversos “modi operandi” governativos, não por se lhes barrar a liberdade de escolha, mas pela rarefação dos modos por que optar.
Com uma agravante. A de, em conformidade, haver também quem lhes ofereça a gestão do futuro em troca da do presente. Iludindo os reais constrangimentos da conjuntura e remetendo a governação, com o seu deve e haver, para uma venturosa estrutura que se porfia alcançar.
Ou já com um muito pouco aliciante probatório, ou com muito mais atrativas elucubrações que ninguém como o populismo consegue adornar.

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