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Digressões Interiores: Mulher nem vê-la

João Lourenço Roque - 23/02/2017 - 11:00

Nunca pensei chegar a velho. Afinal, mais depressa envelheci. Não é preciso olhar-me ao espelho nem verificar o bilhete de identidade.

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Nunca pensei chegar a velho. Afinal, mais depressa envelheci. Não é preciso olhar-me ao espelho nem verificar o bilhete de identidade. Basta-me sentir o tempo e o rodar das estações. Ainda não há muitos anos, o clima pouco me afligia. Fizesse sol ou chuva, frio ou calor, a tudo me acomodava. Agora detesto o inverno gelado que me deprime e adoenta, salvo naqueles dias de sol espelhado em que tudo parece ainda luminoso e prometedor. Redobradas as forças e o entusiasmo nesses curtos intervalos, lá vou eu a cuidar das minhas oliveiras. Nessas e em outras jornadas é raro encontrar alguém. Pouco se me dá, penso e falo sozinho sobretudo quando deparo com misteriosas e impensáveis surpresas. Mal se acredita mas ainda recentemente fiquei de boca aberta e de olhos arregalados quando no cruzamento de quatro caminhos, na rota dos quatro ventos,  avistei três peças de roupa interior feminina, todas iguais e de cor preta, amarradas nas estevas. De imediato soltei as rédeas à imaginação e exclamei de mim para mim: queres ver que anda por aqui à solta uma mulher nua, nos braços do sol, ciosa de outros abraços e calores! Seria sorte a mais; para meu desgosto ou desengano mulher nem vê-la… Incrédulo e espantado, regressei à normalidade racional e ocorreu-me tratar-se de uma brincadeira ou de um sinal escuro de bruxaria à moda antiga com novos artifícios e requintes… Por acaso - ou talvez não…- no mesmo cruzamento onde haverá perto de um século alguns dos meus tios Cardosas terão encontrado uma mesa posta com apetitosos manjares. Sorte a deles em não lhe tocarem, ao contrário do cão que os acompanhava e que em breve achou a morte. Não digo mais nada porque, mesmo duvidando que as bruxas ainda existam, não gosto de brincar com coisas sérias. Alguma razão terá o José Paulo quando me diz:” ó tio, há certas coisas…”. Podadas as oliveiras e queimada a rama, era quase noitinha quando voltei a casa com mais uma história insólita na bagagem. Numa terra onde a história parou, são outras as histórias que nos ajudam a viver. Histórias que cada qual inventa ou conta à sua maneira. Nunca esperei topar com bruxedos, embora me pareça que bruxedos é o que mais acontece nestes descampados selvagens onde medram as corujas, a solidão e o medo. Somos cada vez menos, contados pelos dedos das mãos, agora que a prima Maria e o primo Américo foram encaminhados para um Lar. Mais tristeza, mais saudades na aldeia, neste ano de 2017. Ano em que se assinalam importantes centenários: a chegada dos combatentes portugueses ao inferno da Grande Guerra, as aparições de Fátima, a revolução comunista na Rússia. Sem esquecer o centenário do nascimento da minha mãe. Nunca pensei chegar a velho e tão depressa envelheci. Fazem-me falta o livro da primeira classe e as raparigas do meu tempo. O teu rosto, os teus olhos, os teus passos na colinas de Coimbra.
João Lourenço Roque

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