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Digressões Interiores: Além as Benquerenças…

João Lourenço Roque - 26/10/2017 - 8:00

Dos Calvos avistam-se as Benquerenças e ouviam-se os sinos. Outrora terras próximas e amigas, hoje em dia distantes e de costas voltadas como se o rio Ocreza, que dantes era ponto de união, se houvesse transformado em barreira intransponível.

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Dos Calvos avistam-se as Benquerenças e ouviam-se os sinos. Outrora terras próximas e amigas, hoje em dia distantes e de costas voltadas como se o rio Ocreza, que dantes era ponto de união, se houvesse transformado em barreira intransponível. Eu próprio fiz bons amigos naturais daquela linda e airosa povoação nos anos liceais em Castelo Branco, de que destaco o Agostinho Belo que detinha na casa onde morava – à entrada da rua de Santa Maria, se bem me lembro – uma vasta biblioteca de livros de “cowboys”, uma das literaturas mais apetecidas naquela época em que o cinema americano nos intoxicava e deliciava com os filmes do “Farwest”. Há muito que não vou às Benquerenças, freguesia cada vez mais procurada – conforme ouvi dizer – por médicos e outras pessoas graúdas de Castelo Branco, na instalação de segundas residências. Há muito que não avisto ninguém daquelas paragens, a não ser o “Zé Pisco”, de vez em quando, nas ruas da cidade, já sem burro nem bicicleta. Mesmo sem querer, dou por mim a conjecturar: que será feito do pessoal das Benquerenças? Tão depressa desapareceu o mundo da nossa infância… Dantes não se passava semana sem que nos Calvos aparecessem “benquerenceiros”. Uns em trabalho, principalmente os moleiros mas também vendedoras de vassouras de rebolo – sobretudo a Ti Maria Bispa-, “gateiros”, compradores de presuntos em troca de quilos e mais quilos de toucinho. Outros em passeio – atraídos pela beleza das moças ou pelo vinho que “não embebedava”-, sempre à espreita de boas conversas e melhores patuscadas. Patuscadas ali ou ao longo do rio – no moinho do Pisco, na Foz da Líria, no moinho do Bernardo, no moinho do Ti João das Garridas -, saboreando deliciosas “migas de peixe” e emborcando garrafões de vinho e garrafas de aguardente, alguns até cair e fazer marcha atrás… Com muita frequência também os “calvenses” visitavam as Benquerenças (e até o Retaxo e os Cebolais) por diversos motivos e vicissitudes: na mira de festas e namoros ou de outros petiscos em boas tabernas, à procura de remédios para os males do corpo junto do Senhor Joaquim Barbeiro que tinha fama de ser muito sabedor e entendido, a granjear a vida com a venda de cestadas de produtos hortícolas e fruta. Trabalho e esperança de mulheres rijas que, por vezes, regressavam com a mesma carga e de bolsos vazios. Deixa que te diga: vida dura, vida pobre a das mulheres de então! Insisto nas memórias da juventude e volto a perguntar: o que é feito da “malta” das Benquerenças? Bem sei ou adivinho que alguns partiram de vez... Mas partiram para onde? Desgostoso não me canso de repetir: tão estranha, ilusória e misteriosa a condição humana! Partimos sem deixar rasto, partimos sem saber o que ficou de nós, deixamos de existir como se nunca tivéssemos existido… Talvez por isso eu goste tanto de escrever, mesmo sabendo que toda a minha escrita se apagará. Mal escrevi isto, lembrei-me novamente do meu último livro. Já longe da sessão de lançamento, fiquei a saber de muitos leitores que desconhecia e levantaram-se outros momentos especiais. Para me ater a um só, registo o caso daquele emigrante – o Manuel dos Vilares, genro do moleiro e da moleira da Ponte – que de propósito me procurou nos Calvos para saber onde adquirir as minhas “Digressões” que desejava levar para França, onde – segundo confessou – por nada perdia a leitura das “crónicas” no “Reconquista”. Ofereci-lhe o livro, com dedicatória, e ele, quase sem palavras, não evitou as lágrimas. Despedimo-nos brevemente com os melhores votos e não sei que lembranças e emoções…

Avisto de novo as Benquerenças de Cima e de Baixo. Terra de gente famosa na caça e na pesca, mesmo descontando o caso daquele pescador de anzol que tirava do rio peixes já fritos. Terra de boa gente, tão próxima de nós e tão diferente. Diferente na linguagem, mais ainda nas filosofias de vida. Outras maneiras de pensar, outros modos de ser e de viver, mais abertos e divertidos, mais livres e vagarosos. Queria fugir das Benquerenças e dos Calvos… queria fechar as memórias na memória. Em vão, logo agora que chegou o tempo da apanha da azeitona. Vieram ter comigo os ranchos de antigamente. Desta vez, os ranchos de moços e moças das aldeias que iam semanas inteiras para as quintas de Castelo Branco. Agradava-lhes e à família o dinheirinho que ganhavam. Agradava-lhes ainda mais a “caraiva” e a liberdade – longe da vigilância e das caturrices dos pais. Liberdade feita de namoricos, brejeirices e tentações à vara larga. Para alegrar o trabalho e a alma, as raparigas soltavam ao desafio estas e outras modas: A azeitona miudinha/ apanhada uma a uma/ estes rapazes de agora/ não têm vergonha nenhuma; A azeitona miudinha/ também vai para o lagar/ eu também sou miudinha/ mas sou firme no amar; A folha da oliveira/ quando cai no lume estala/ é como o meu coração/ quando para o teu não fala; Os amores da azeitona/ são como os da cotovia/ acabada a azeitona/ fica-te com Deus Maria; A oliveira chora chora/ ela chora e tem razão/ apanharam a azeitona/ a rama ficou no chão; Ó cirenda cirendinha/ hei-de ir ao teu serão/ a fiar na minha roca/ com a cirenda na mão. Principiei esta crónica em data que nunca esqueço: o 7 de Outubro, primeiro dia de escola nas escolas que já fecharam. Espanta-me a quantidade de informação e de recordações que armazenamos no cérebro. Com o correr da vida, receosos do futuro, agarramo-nos à memória como tábua de salvação, esquecendo ou fingindo esquecer que mais cedo ou mais tarde tudo se perde, tudo se apaga. Amanhã, ou depois, gostava de redescobrir as antigas veredas e revisitar as Benquerenças.

COMENTÁRIOS

Maria Rodrigues-Dite
à muito tempo atrás
Como a vida mudou....mas as benquerencas estao no mesmo sitio ainda ha pessoas desses tempos.e apesar de nao viver la vou la muita vez e ainda se tenta um convivio grande entre os benquerenceiros de lá e os que para la se mudaram.
Catarina Lourenço de Carvalho
No ano passado
Que bom ler sobre o Ti João das Garridas! Meu bisavô! Nas azenhas do Rio Ocreza o meu avô João Nunes "Novo" ou João Nunes Roque (pela linhagem materna) deu continuidade ao ofício de moleiro.
Ando a recuperar estas histórias e lugares ❤️