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Digressões Interiores: "E tudo o vento levou"…

João Lourenço Roque - 16/03/2017 - 11:01

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O sol era fogo no Verão passado. Valeram-me os gelados no frigorífico e as melancias na horta do quintal, as sestas de tarde na casa do sobrado. A água, sempre a água, alguns mergulhos na bela piscina de Santo André das Tojeiras. Quase sempre só, às vezes em boa companhia. Mulheres e crianças lindas, em noites de festa nas aldeias ou em visitas passageiras. Lindas mesmo, em todos os olhares e fotografias. Estranhei a tua ausência na feira de S. Jacinto e na festa de Agosto das Sarzedas, a melhor da região. Com pouca ou muita razão, deves achar que falo demasiado de mim nas minhas crónicas. Mas falar de mim é o meu disfarce ou o meu jeito de falar de nós e de todos aqueles, nomeados ou esquecidos, que se cruzaram e cruzam nos nossos caminhos e inquietações. Às vezes de uma forma muito simples e ingénua, outras vezes com enredos ou arremedos de novela… Aliás, novelas ao vivo e em direto é programa que aqui não falta. Nestes improvisados palcos sociais e culturais, aparentemente imutáveis, todos se chegam à frente à espera do melhor papel. Sem cuidarem de grandes estudos ou ensaios, ora recorrem à imitação ora tiram tudo da própria cabeça. Em especial as mentiras que gostam de enfiar no meio de qualquer conversa. Algumas famosas e que ainda correm. Entre elas, a daquele emigrante que trouxe da França uma raça de galinhas que punham três ovos por dia. Fenómeno que levou alguns vizinhos a rondarem-lhe a capoeira e a baterem-lhe à porta, para trocas ou encomendas. Nos Calvos e arredores reina ainda a “civilização da oralidade e da memória coletiva”. A mim, que passei a maior parte da minha vida metido na leitura e na escrita, espanta-me a incapacidade ou a indiferença dos meus conterrâneos em lidar com as memórias e os registos em papel. Pelo que sei nada guardaram, nada ficou que permita ilustrar pedaços da história da vida privada e familiar ou da história comunitária. Encartado no ofício de historiador, em vão pergunto por retratos a preto e branco, por cartas de namoro, por cartas de combatentes na “Grande Guerra”, por cartas de “ratinhos” que iam para as ceifas no Alentejo, por “aerogramas” dos soldados da guerra colonial e das “madrinhas de guerra”, por folhetos volantes com “romances” e “histórias de arrepiar” em versos que os tocadores ambulantes espalhavam pelas feiras e romarias ou nas ruas das aldeias…Tudo perderam ou rasgaram…”E tudo o vento levou…”. Tantas histórias contadas, tantas histórias por contar.
Bruscamente mudo de rumo. Ouço dizer que os investimentos públicos e o progresso regional continuam a marcar pontos. Mas será mesmo progresso? Deixando de lado pequenas obras inacabadas ou sem o mínimo rasgo estético, em certos casos, sem ofensa, mais me parece desperdício. Pergunto só por perguntar: Que sentido fará esgaldroir recursos avultados em sedes de associações locais (com frequência muito escassa e irregular) ou em “casas mortuárias”, numa paróquia que conta com várias capelas e igrejas. Entretanto, afundam-se no esquecimento ideias e projetos que, no meu fraco juízo, seriam bem mais importantes e benéficos. Pode ser que alguém com poder e imaginação se lembre de recuperar algum moinho, instalar passadiços nalguns dos mais belos trechos do rio Ocreza e dotar a vila de Sarzedas com equipamentos essenciais, nomeadamente uma piscina, uma pousada e um parque de campismo. Pode ser até que alguém com ousadia e vistas largas se bata pela construção de uma ponte na Foz da Líria… Dito isto – a que poderia acrescentar-se a defesa intransigente do património ambiental, ameaçado com a plantação de eucaliptos sem rei nem roque -, adivinho que não faltará quem, com carradas de razão ou de ânimo leve, me aponte o dedo por tamanhas “loucuras” e “utopias”. Pouco me importa, porque sempre gostei de dizer o que sinto e o que penso. Noutra onda e num breve desvio político, confesso que já tenho saudades dos tempos em que Marcelo Rebelo de Sousa só aparecia na televisão uma vez por semana… Torno a mudar de rumo, mas ainda nos mesmos sítios. Tremo quando regresso de Coimbra, agora que vai sendo raro não estarem à espeita más notícias. Em princípios de Agosto, mal pus os pés fora do carro logo me relataram aquela desgraça silenciosa, pela calada da noite, que semeou tristeza e alarido nas Teixugueiras e nas povoações vizinhas: a morte trágica do parente José Rodrigues Lourenço (mais conhecido por “Zé da Poldina”), homem exemplar que todos estimavam, muito apegado à família, à vida e ao trabalho. Pessoas às centenas no funeral em S. Domingos, a 8 de Agosto, dia de S. Domingos…Silenciosamente também eu fiquei triste, também a mim me faz falta quando passo no Vale de João Pais, modesto lugarejo assombrado em ruínas, entre os Calvos e as Teixugueiras, ainda habitado no século XVIII e pertencente, como tantos outros, à Misericórdia de Sarzedas. Ali, onde quase sempre o avistava com o burro ou com as cabras. Pontos de encontro agora desencontrados. Mais sítios para ter medo ou rezar. Referências de vida perdidas nos caminhos abandonados. Outros destinos, sem destino. Em páginas e memórias diversas, repletas de surpresas e contrastes, se escreve a existência terrena. Em Setembro, o famoso Largo do Forno, que corre mundo no Facebook e que bem merecia ser alindado com um chafariz erguido em pedras de xisto, voltou a ser palco de novos episódios de grande folia, beleza e encantamento com a boda da Catarina e do Vasco, a quem, mesmo de longe, desejo uma longa vida em comum, criativa, abençoada e feliz.    
Gosto dos dias de sol, mesmo quando o sol era fogo. Anéis de luz nos teus cabelos soltos, juras de amor à beira-mar. Há momentos e imagens tão comoventes que soltam as lágrimas e nos deixam sem palavras: aquela menina salva dos escombros do sismo em Amatrice, na Itália. Um raio de luz nas trevas da noite incerta, um sinal de esperança nas tragédias da vida. Histórias contadas, histórias por contar. Palavras em silêncio nas águas do rio ou ao pé da macieira.

COMENTÁRIOS

MARIA BEATRIZ MENEZES
à muito tempo atrás
Uma cónica muito clara, atraente na sua forma estética.Mais uma vez salienta as suas preocupações ao nível de fazer história social, recente, das gentes locais. APRECIEI.