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Digressões Interiores: Linguagem de outros tempos

João Lourenço Roque - 10/11/2016 - 8:00

Em tempos mais ou menos recuados, campo e cidade constituíam universos distintos, por razões históricas, geográficas e sociológicas. 

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Em tempos mais ou menos recuados, campo e cidade constituíam universos distintos, por razões históricas, geográficas e sociológicas. Felizmente ruíram de vez algumas das barreiras mais gravosas. Outras, ao invés, persistiram ou acentuaram-se. Prova disso, as dificuldades dos “turistas” em entenderem os ritmos e as expressões comunicacionais que ali vigoram. Nos Calvos e em outras aldeias da região das Sarzedas só com recurso a um intérprete experiente será possível decifrar vocábulos e frases inteiras ou sincopadas que algumas pessoas ainda intrometem na linguagem corrente, a exemplo da amostra que se segue, mais ou menos inserida nos “dialectos sarzedenses”: Amerco (Américo); abespra (vespa), acajadar (arrecadar o feno, o milho, etc.), açodado (assustado, aflito), acotlar-se (acautelar-se), acouter-se (abrigar-se da chuva),alamite (dinamite), alamões (alemães), alcraio (lacrau), alimbrar-se (lembrar-se), alueda (aluada), andar de má raça (sentir-se doente), antonte (anteontem), apouvlher (ajeitar as coisas), armónho (harmónio), arrepiedo (arrepiado), avintar (deitar fora). Binqrenças (Benquerenças); bacina (vacina), baionco (pouco esperto, fácil de enganar), bassoura (vassoura), batarrnário (veterinário), blancia (melancia), blúsia (blusa), boer (beber), bormelho (vermelho), braboleta (borboleta), bua (água – queres bua, meu menino…). Cândega (Cândida), Celestre (Celeste), çanteio (centeio), carcaçãnas (velho e feio), celebre (juízo – aquela fedúncia não tem celebre nenhum…), çgerro (cigarro), chamuskédo (velhaco), chicolate (chocolate), crafanhoto (gafanhoto), cramouço (monte). Dlaide (Adelaide), Dlino (Adelino); dindes (dais), dinheiro esbulhedo (dinheiro miúdo, trocos), desacraçoar (desanimar), dzinçouner (aliciar, puxar para o bem ou para o mal – aquela sécia anda a dzinçouner o meu filho…). Estina (Justina); esbandouvedo (espalhado – a ventania deixou-me o feno todo esbandouvedo), esboucer (destruir – as cabras daquele porra esbouceram-me a vinha toda…), enxabardeado (sujo), esbarragar (chorar muito), escamunguer (destruir, estragar), escamunguedo (malvado – na noite passada, os javalis foram à nossa horta e escamungueram tudo, metia dó tanta estragação, arre escamunguedos…), escalfurriedo (muito zangado), escarrafoucedo (despenteado com se tivesse visto um lobo), esfaguntedo (acelerado, espantado), espoujinho (redemoinho de vento), esptchedo (esticado – ó cousa, já vistes que só me sinto bem na cama com as pernas esptchedas…), esqueixolar-se (lamuriar-se), estar em alcates (estar em cuidado), estarrnantonte (antes de anteontem), esticar-se (armar-se em fino, em importante), esturto (pessoa já com idade mas ainda rija e direita). Fatma (Fátima), fadangage (gente de maus costumes), falar à estica (falar à fina), falcatage (falcatos, malta que só pensa em fazer mal), fona (grande labuta – hoje, eu e a minha patroa andámos todo o santo dia numa fona), fromiga (formiga). Gadnege (grande cabrada), gatcho (cacho de uvas), gatunege (gatunagem), gente ingazuleda (pessoas dadas à bebida). Hospdar os alméis (deitar comida aos animais). Inselmo (Anselmo), Inzelina (Angelina), inbajoukédo (vítima de acidente), inciedo (com cio), incouro/inplatcho (nu – aquelas desavergonhadas andavam no rio implatchas, com tudo à mostra), incoutchedo (curvado), informeira (enfermeira), inmaleitedo (adoentado), inmoutedo (escondido), inpandnedo (empanturrado), inté (até), inzol (anzol). Jabardo (porcalhão), jum (jejum – ainda estou em jum). Lançol (lençol), landum (paleio manhoso – tens muito landum), limbdelas (guloseimas), linterna (lanterna). Mandadelhos (pequenos trabalhos ou recados), maldçoedo (maldito), manhouva (atrasado), moinento (vadio, preguiçoso), muzca (música – banda filarmónica), muzqueiros (músicos da banda – intigamente quando ia à Senhora dos Remédios até me regalava de ver os muzqueiros com tantas cornetas e de ouvir a muzca do Retaxo…). Nagaça (gaja boazona), non (não). Oitubro (Outubro), óptite (apetite), orvilha (ervilha). Pidade (Piedade), Poldina (Leopoldina), Preças (Preces); palonço/pascoal (atrasado), poucatchinho(pouco, apoucado), propino (pepino). Qôrenta (quarenta), qôresma (quaresma). Rabastel (pequeno rebanho), rabozilho (grande confusão), retoucer/retouço (brincadeiras…andar no retouço), rouxnol (rouxinol ou em sentido figurado…o diabo do velho só quer espreitar-me o rouxnol…) Slada (salada), soba (sova), soidades (saudades). Telvina (Etelvina), Tidora (Teodora); talamou (atrasado), taranta (tarântula), tchalada (tigelada), tilfone (telefone), tindes (tendes), tmintões (pimentos), tosquiedo (tosquiado), toutceda (pancada forte), traboada (trovoada), traqtena (traquitana, geringonça), trefe (atrevido, malandreco), trofego (andar num trofego – trabalhar muito), tropeço (pessoa idosa e frágil – ai primo, eu e o meu home já não prestamos para nada, estamos feitos dois tropeços…). Unta (grande molha, grande sova), untedo (encharcado pela chuva, espancado – armou-se em valentão no arraial mas unteram-lhe o corpo até dançar as tropecinhas…). Vienda (vianda dos porcos), vnegre (vinagre). Xareta (rápida-corria que nem uma xareta…), xestra (sesta). Zambalho (fraco, desfigurado), zarrongueiro (lento). A partir deste brevíssimo “dicionário”, talvez comeces a entrar melhor nas conversas que, a propósito de tudo ou de nada, se atravessam à nossa frente nas ruas da nossa aldeia. Isto no dia a dia comum, porque na presença de estranhos e de “pessoas da alta” quase todos se apuram e falam mais “fino”. Às vezes, com piores resultados. Parece uma “charada”… Parece mas não é. Faz parte genuína da cultura oral em que nasci, parcialmente alterada nos bancos da escola. Que crónica tão maçuda, dirão os leitores alheios à linguística e aos usos das aldeias. Mais valia “dzinçouner-te” para outros caminhos, falar-te das casas onde já vivi ou das noites estreladas que só no campo se avistam em todo o seu esplendor, à vista desarmada. Numa das últimas noites de Setembro, fiquei abismado com o brilho e a trajectória de um estrela cadente, mesmo defronte dos meus olhos surpreendidos e maravilhados. Lembrei-me de vós… Abismado fico eu sempre com os mistérios do universo. Fico a pensar: que fazemos aqui? Nós que não passamos de um grão de areia ou de uma poeira e que em nossas vidas contaremos por menos que um segundo no tempo e na história universal. Às vezes, gostaria de subir pela buganvília que já cresceu muito acima do telhado da casa do João Filipe. Cresceu para a luz e para o futuro incerto, enquanto a casa, mais que centenária, permanecer assombrada no passado, à espera de novas conversas e melodias. Subir pela buganvília florida, descobrir onde estou e não estou, desaparecer na imensidão do universo. Descer na luz de um poema cósmico, viajar contigo nas canções e na voz (Menina) da Cristina Branco. Perder-me nos teus passos, ou nas cores do outono. Nos teus passos que me levam não sei onde…

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