Este site utiliza cookies. Ao continuar a navegar no nosso website está a consentir a utilização de cookies. Saiba mais

Digressões Interiores: Onde cantam os rouxinóis

João Lourenço Roque - 23/05/2018 - 11:33

Outra vez, as Benquerenças airosas. Avistam-se de perto e de longe, mas não vejo ninguém. Apenas outras lembranças do rio, outras histórias e imagens da vida passada. Há tempos encontrei o Zé Pisco em Castelo Branco, alquebrado e queixoso: ”Já morreram todos os moleiros, só resto eu… O homem que eu era e aos pontos a que cheguei…” 

 

Partilhar:

Outra vez, as Benquerenças airosas. Avistam-se de perto e de longe, mas não vejo ninguém. Apenas outras lembranças do rio, outras histórias e imagens da vida passada. Há tempos encontrei o Zé Pisco em Castelo Branco, alquebrado e queixoso: ”Já morreram todos os moleiros, só resto eu… O homem que eu era e aos pontos a que cheguei…” Quis animá-lo, mas senti que também era minha a mágoa que corria nas suas palavras arrastadas. Afastei-me sem nada adiantar, a não ser que gostávamos que aparecesse nos Calvos para bebermos uns copos à roda de outras conversas. Conversas antigas, conversas vivas, conversas mortas ou paradas… À beira do rio e das pedras do moinho, bem picadas e infatigáveis, a moer trigo, centeio e milho. Sacos de farinha pura, promessas de pão caseiro nos fornos comunitários. Morreram os moleiros, desapareceram os burros carregados de taleigos, não sei se alguém ainda cantará esta estranha cantiga: “Amores do outro lado/ não os quero nem de graça/ sempre dão a desculpa/ a ribeira não se passa”.

É bem verdade que o mundo é pequeno e que as gentes da nossa terra nos surpreendem a cada passo com tiradas “manhosas”, envolvidas em argumentação “filosófica” e reflexões geopolíticas, conforme ilustra este diálogo (quase monólogo) entre dois proprietários rurais: “Ó Amável, talvez me queiras vender aquela terra, ao cimo da Junqueira, que pega com as minhas? Ó Zé, olha, eu não digo que não ta venda, mas por agora ainda não… o dia de amanhã ainda ninguém o viu, ainda ninguém sabe como será. Tu não vês a guerra na Síria, tudo por causa do pitróleo?” Pouco interessado em semelhante paleio e apercebendo-se de imediato que o negócio estava mais ensarilhado que a situação política no Médio Oriente, o Zé tratou de marchar para as suas guerras do dia a dia atrás ou à frente da bela cabrada, deixando o Amável a pensar na Síria ou em poços de “pitróleo” e a cuidar do pinhal, por enquanto de pouco valor, naquela courela outrora destinada a “assentos de casas” no âmbito dos projectos urbanísticos da sociedade imobiliária familiar “João Mendes e Varão”…

São raros os convívios festivos nas Sarzedas, mas quando acontecem são de arromba e espalham grande fama. Assim sucedeu com o jantar anual do Clube de Caça e Pesca, a 24 de Março, no Salão da Junta de Freguesia, em que participei graças ao generoso convite do Presidente, o Senhor António Santos, bom amigo e grande caçador. Noite memorável, noite de primeira categoria. Pessoas às centenas (de todas as idades e de muitos lugares), simpáticas e divertidas. Comida farta e excelente, com pratadas de bacalhau, de javali caçado na região e sobremesas variadas. Bons vinhos, sobretudo do “lavrador” porque muitos dos convivas apresentaram-se “armados de garrafão”. A conselho do meu afilhado, João Filipe, receoso de que o padrinho se alargasse nas misturas e caísse na bebedeira, defendi-me das tentações, bebendo apenas do vinho do meu irmão e do parente Zé Manel dos Vilares de Baixo, mas custou-me bastante não ter provado mais alguns, em especial o do primo Américo Rosa Nunes, premiado em vários concursos, segundo ouvi dizer ou li no “Reconquista”. Bons vinhos – repito – e boas águas. Boas palavras, nas conversas à mesa – descontando o caso de um ou outro conviva mais “aborrecido” ou já “xarengo” - e nos discursos protocolares do Presidente do Clube e da Presidente da Junta de Freguesia, Dr.ª Celeste Rodrigues, que, a par de outros dons e qualidades, tem a arte da palavra, a arte de nos prender e encantar em tudo o que diz e quer dizer. Mais palavras e alegrias na voz dos jovens cantadores e no toque das suas concertinas. Noite longa e breve, noite para recordar e repetir. Não tardará aí a “feira medieval”…

Em chegando Abril, repetem-se, sempre iguais e diferentes, as romarias da nossa fé e da nossa identidade cultural nos santuários e nos caminhos da Beira Baixa. De longe vem o nosso apego à Senhora da Saúde, no Padrão, à Senhora de Mércules e à Senhora do Almortão, as “três irmãs” como antigamente diziam. Este ano, no dia 15 de abril, voltei à Senhora da Saúde, não a pé como no ano passado, mas de carro por míngua de forças devido a uma gripe assanhada. No carro do José Paulo e ainda na boa companhia do meu irmão, da Otília e da prima Conceição dos Vilares de Cima, uma prima muito querida. Não sei o que mais me atrai nestes cenários e devoções… Talvez aqueles momentos raros de espiritualidade e de transcendência religiosa ou cultural que marcam a condição humana. Talvez a sensação ali mais funda de que na vida todos somos peregrinos, ainda que por razões distintas e em diferentes caminhos. Talvez a memória e a lembrança dos nossos antepassados, lágrimas escondidas nos olhos e na alma. Não sei o que mais me impressionou na romaria da Senhora da Saúde… Talvez as vozes e os silêncios dos que rezavam. Talvez a música que glorifica a palavra e as cerimónias e que toca dentro de nós. Talvez a presença tão numerosa de jovens, vindos de tantos lados, de tantas promessas e interrogações. Talvez os idosos, frágeis e diminuídos, que todos os anos caminham e renovam a esperança de regressar. Talvez a luz e a beleza tentadora, mística e divina, em tantos rostos femininos. Quanto a “petiscos”, nada melhor que aquelas deliciosas “farturas”… Mesmo sem saberes levei-te comigo à Senhora da Saúde. Que pena não termos ido à Senhora de Mércules e à Senhora do Almortão… Ai os adufes nas tuas mãos! Lágrimas e sorrisos nos teus olhos e no meu coração. Tão próximas e tão distantes as nossas vidas. Tens Paris, Roma e Florença, Santiago de Compostela. Viajas pelo mundo todo. Eu, mal saio da Beira Baixa, este mar silencioso de aldeias perdidas, outrora mar de sol e vento nos trigais imensos. Felizmente, descubro ribeiras ou fontes que já ninguém conhece. Ainda sei onde cantam os rouxinóis.

COMENTÁRIOS