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Digressões Interiores: Outros tempos, outros sinais

João Lourenço Roque - 12/04/2018 - 14:50

Em tempos recentes de seca prolongada, admira-me, mas só até certo ponto, não terem ressurgido antigos rituais e manifestações de religiosidade popular.

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Em tempos recentes de seca prolongada, admira-me, mas só até certo ponto, não terem ressurgido antigos rituais e manifestações de religiosidade popular. Com o pensamento fixado na história e nas crenças mais profundas dos nossos antepassados, que viam as calamidades e as desgraças como um sinal de “castigo divino” pelos seus pecados e desmandos, “revejo” inúmeros episódios ao longo dos séculos em que as populações se congregavam a implorar a misericórdia divina para que lhes acudisse nos males que as afligiam. Em épocas de guerras, de epidemias, de pragas, de fomes, quase todas as comunidades se viravam para o “Altíssimo”. Enquanto ameaças de fome e de morte também as secas calamitosas (ou as chuvas prolongadas) desencadeavam expressivas manifestações de fé e penitência coletivas. Por aqui, ainda se conta ou acredita que tirar o São Domingos da sua capela, em procissão, garantia a chuva desejada. Milagre certo – afiançam – que deixou de acontecer quando venderam as oliveiras que ao Santo pertenciam… Lendas e crenças ancoradas nas vivências e nas mentalidades do mundo rural, com largas projeções nas próprias cidades. Histórias e realidades de outros tempos, agora tão mudados e diferentes. Outros tempos, outros sinais. Por toda a parte abundam os exemplos. Conheço centenas de documentos históricos que registaram “preces públicas e procissões de penitência” por motivo de calamidades, em particular no distrito de Coimbra, região em que se enquadra a minha tese de doutoramento. Por aqui, nos Calvos e redondezas, ainda há quem se lembre das tradicionais “preces públicas”, sem esquecer os conselhos daqueles que advertiam: “Enquanto houver água na fonte não peçam chuva. Deus Nosso Senhor a mandará quando achar melhor…”.

Na história me perdi, na história te encontrei. Na história ou nestas palavras tão amigas e especiais da ilustre Colega Maria Helena, a propósito ainda do meu último livro: “Ler-te é glorificar a palavra na sua essência de leveza, de simplicidade, qual correnteza de água límpida de um qualquer ribeiro. Nunca, mas nunca, pares de escrever. A tua escrita é o teu ser. Que se reproduz no mais íntimo de tantos outros. Sente o meu abraço amigo, quando um raio de sol te tocar”.

Hoje, outra vez a tristeza. Dias de chuva, flores à espera. Na história dos Calvos e das Sarzedas, mais uma página triste. Após uma vida longa, de mais de 90 anos, partiu a ti Preces (Preces Gonçalves). Nunca mais a veremos a tratar da sua vidinha atrás das cabrinhas, na horta viçosa ou na regadia do Vale dos Cavalos tantas vezes de companhia com os meus pais. Nunca mais a veremos à porta de casa, rodeada de roseiras, na janela do sobrado ou nos assentos da Rua Principal, à espera das carrinhas do pão, do peixe e da mercearia ou à espreita do sol e das conversas com as “comadres” que lhe faziam a trança. Nunca mais lhe pediremos para “rezar baraças". Nascida e criada no seio de uma família de bem, filha de um valoroso combatente da “Grande Guerra” – o ti João Serrasqueiro de quem guardo boas conversas e recordações -, irmã de muitas irmãs (todas bonitas) e de um irmão, mãe solteira ainda jovem na casa de seus pais. Mãe solteira em lugares e em tempos muito difíceis e fechados – tempos e lugares de vergonha, reprovação e maldizer -, enfrentou a sua sorte e o seu destino sempre a cuidar do filho com muita coragem, enlevo e dedicação. Por acaso – ou talvez não – morreu no “dia da mulher”, a 8 de março. Deixou-nos muitas saudades, a ti Preces, boa pessoa, boa vizinha. Mais que isso, uma grande mulher! Palavras minhas e da Ana Paula… Palavras breves, completas e incompletas. Outros tempos, outros sinais.

Calvos, março de 2018

 

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