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Vergonha de nós todos

Florentino Beirão - 02/11/2017 - 10:03

Quem hoje viajar de Castelo Branco para Lisboa, Coimbra, Portalegre ou Guarda, encontra-se quase sempre rodeado por contínuas manchas de árvores e casas, envolvidas num negro manto de cinzas. Alguém que viesse doutro país poderia mesmo pensar que, uma parte significativa do nosso país teria sido bombardeada. A este cenário dantesco, teremos ainda de acrescentar, infelizmente, mais de cento e quatro pessoas falecidas e milhares de animais que também sucumbiram nos incêndios neste tórrido e fatídico verão. Por vezes, em direto, através da omnipresente televisão, o fogo e o sofrimento das pessoas afetadas, incluindo os valorosos bombeiros, entrou-nos pela casa adentro apertando-nos o coração dorido. Não se podia então fugir à pergunta. Como seria possível dominar aquele monstro, com uma simples mangueira doméstica na mão, uns ramos verdes ou uma simples enxada? Alguém até chegou a deitar mão a uns litros de vinho - quando a água se esgotou. Outros, em estado de máxima aflição e desespero, passou-lhe pela cabeça que seria já mesmo o fim do mundo, devorado pelo fogo, como reza uma antiga crença popular.
Foram estas pessoas, cercadas por rápidas labaredas de fogo, os principais atores deste drama arrepiante. Pela morte ou pela desgraça material, foram elas que mais apareceram nas prolongadas reportagens da comunicação social. Sem poder reivindicativo, como disse o Presidente Marcelo, ninguém tem dado pelas suas vidas, imersas no meio de um exuberante e perigoso matagal de pinheiros e eucaliptos que inundavam o centro do país. A poetisa Sophia de Mello Breyner refere-se a esta gente desconhecida do poder longínquo: “às vezes luminosa/e outras vezes tosca/ que me lembra escravos/que me lembra reis”.
Consumindo os seus dias, por vezes os derradeiros, entre uma pequena horta e meia dúzia de animais domésticos, aqui encontravam a base da sua subsistência. Gente, sem horas, habituada a muito trabalho e a pouco lucro. Porém, para além destes reduzidos bens materiais, resplandecem os seus valores humanos os quais dão sentido às suas vidas. Viver com o indispensável, uma grande coragem, muita colaboração, total solidariedade, uma resiliência a toda a prova, uma dor contida, envolta numa enorme dignidade humana. As imagens da televisão e as reportagens da comunicação social bem evidenciaram estes valores humanos. Tanto os empresários, como os que perderam as suas terras verdejantes, garantem agora que não vão baixar os braços. Assim venham as ajudas avançadas já pelo Governo. Este, depois de levar um puxão de orelhas do Presidente da República, e após ter recebido o Relatório da Comissão Técnica Independente, acaba de decidir a implementação de um conjunto de medidas que seguem à linha as orientações da Comissão Independente. Com estas, se pretende reestruturar o setor e responder às necessidades mais prementes das populações atingidas. Segundo o referido documento, as falhas foram mais que muitas. Aqui ficam algumas. Das comunicações aos meios de ataque aos incêndios. Deficiências no Comando e gestão das operações de socorro. Por estas e outras lacunas, acabaram por morrer tantas pessoas, de todas as idades, tendo ardido meia centena de fábricas. Não contabilizando o número astronómico de milhares de hectares de floresta e mais de mil casas esventradas pelo fogo. Acresce anda cerca de duas mil pessoas desempregadas.
Importa agora, como recomenda o Movimento Nacional Justiça e Paz, criar um consenso político para uma ação concertada. Uma descentralização do Estado para ficar mais próximo das populações esquecidas. E ainda, Identificar os criminosos para que se faça Justiça. Que estes não fiquem impunes, mas sem discursos radicais e de ódio. Finalmente, diminuir burocracias para que cheguem as ajudas aos lesados pelos incêndios e às famílias dos falecidos.
Só assim poderemos cantar com o poeta: “ recomeço a busca de um país liberto, de uma vida limpa e de um tempo justo”. A vergonha de nós todos, que foram estes incêndios, exige o empenho de toda a população - cada um a seu modo - para que o renascer das cinzas se torne uma realidade. Como diz o povo: “dos fracos, não reza a história”.
florentinobeirao@hotmail.com

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