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A dimensão ética da existência humana: Vida e Morte com dignidade, sem Eutanásia

- 03/03/2016 - 11:57

O Manifesto apela ao direito de cada um decidir a sua própria morte, reclama o direito a uma «morte assistida». Tal expressão não deixa de ser um eufemismo, pois todas as mortes são ou devem ser medicamente assistidas.

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Escrevo este artigo enquanto cidadã preocupada com o extenso debate sobre o «Manifesto a favor da Morte Assistida», mas sobretudo como profissional de saúde, daí sentir responsabilidade acrescida. Observo nos que defendem a eutanásia um discurso muito emocional e até extremado. No entanto, há que acrescentar ao debate outras opções possíveis e não como alternativa, mas sim como a melhor praxis em doentes com doença avançada, progressiva e sem possibilidade de cura. O que estão a reclamar é no sentido de se legalizar a eutanásia, o ato letal praticado pelo médico, a pedido consciente do doente; ou de lhe proporcionar os meios para que o mesmo ponha termo à sua vida, suicídio assistido. 
Eufemismos
O Manifesto apela ao direito de cada um decidir a sua própria morte, reclama o direito a uma «morte assistida». Tal expressão não deixa de ser um eufemismo, pois todas as mortes são ou devem ser medicamente assistidas. Pretendem que, em vez de eutanásia ou suicídio assistido, se fale de “morte assistida” ou “morte digna”, verdadeiros eufemismos, expressões mais inócuas, com enorme carga emotiva e menos “pesadas”, que confundem a sociedade. Todos queremos uma morte digna, assistida, não necessariamente praticada por outros. A Eutanásia não acaba com o sofrimento, acaba com a vida. O argumento que alegam do “direito a morrer” não passa de outro eufemismo que mais não é do que “o direito a que um médico acabe com a minha vida”, que o mate ou ajude a morrer. E porquê matar ou ajudar a morrer a pessoa que sofre? Em vez de eliminarmos o sofrimento eliminamos a pessoa? Será aceitável?
Direitos e Deveres
O direito à Vida Humana é um valor supremo e inviolável. A Constituição da República Portuguesa evoca desde logo a dignidade humana (Art.º 1º e 13º), em conformidade com a Declaração Universal de Direitos Humanos (Art.º 16º). Nos Art.º 24º, 25º, 26º e 64º que consagram o direito à vida e o dever de a defender e promover. A vida humana é inviolável. 
O Código Deontológico da Ordem dos Médicos refere a necessidade de respeitar a vida humana, desde o seu início, Art.º 47º, 48º, 49º, e 50º. O Código Deontológico da Ordem dos Enfermeiros, Art.º 82º (direito à vida e à qualidade de vida); Art. 87º (Do respeito pelo doente terminal). 
O parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) - Parecer (11/CNECV/95) evidencia a inviolabilidade da vida humana e a inexistência de «argumentos éticos, sociais, morais ou jurídicos ou da deontologia das profissões de saúde que justifiquem a possibilidade legal da morte intencional de doentes (mesmo não declarado ou assumido como tal) por qualquer pessoa designadamente por decisão médica, ainda que a título de “a pedido” e/ou de “compaixão”»
Sofrimento Intolerável


O outro argumento usado é a não aceitação do sofrimento intolerável. Em pleno século XXI é de facto inaceitável que doentes vivam em sofrimento intolerável, vivam essa fase da vida de forma indigna, em profunda angústia e desespero. 

Importa ainda alertar que numa época de crise económica e social se observa uma vulnerabilidade acrescida; há cidadãos a viver em condições precárias, de pobreza, de desestruturação familiar e até miséria social; se em situação de doença crónica prolongada e sem cuidados de saúde adequados que os ajudem a eliminar esse imenso sofrimento, é esperado que a sua desesperança os possa encaminhar para um pedido de eutanásia ou de morte assistida. Quantas vezes em situações limite, em momentos de grande sofrimento ou desespero dizemos “quem me dera morrer”, tal não significa obrigatoriamente um pedido de eutanásia, antes e apenas um pedido de ajuda.
Noutra perspetiva, quem irá definir com objetividade o “sofrimento intolerável nos doentes sem esperança de cura”, enquanto critério para solicitar eutanásia? Quem o irá definir, ainda mais quando a resposta se trata de uma opção irreversível e drástica, uma morte? Ou será este termo um saco sem fundo que vai permitir que doentes crónicos e sem esperança de cura, pessoas deprimidas, deficientes, indigentes, recém-nascidos com malformações congénitas e outros, possam pedir para terminar com as suas vidas?
Uma nova forma de eugenia social? Este critério, os limites ou a falta deles preocupam-nos seriamente.
Marguerite Duras no seu livro «La Douleur» refere que quando o sofrimento é muito, o pensamento não chega a fazer-se, é só sofrimento por todo o lado, o pensamento está impedido de se fazer, ele não participa no caos mas é constantemente suplantado por esse caos, sem meios, face a ele. Quando o sofrimento é elevado, o doente perde a capacidade de discernimento, precisa de ajuda, de alívio e de reencontrar um sentido na vida. Esse sofrimento captura-lhe a liberdade, distorce a capacidade de decisão, e poderá dizer-se que de certa forma o doente é “abandonado à sua autonomia”, não decidirá de forma esclarecida sobre todas as alternativas terapêuticas de que dispõe e sobre os resultados das mesmas. O pedido de eutanásia surge neste contexto de desespero. Convém sublinhar que a eutanásia pressupõe a entrega e transferência da autonomia do doente ao médico que a pratica, ou seja, o doente “perde” afinal a sua autonomia, um argumento também usado no Manifesto. 
Cuidados Paliativos conferem/restauram a Dignidade
A resposta técnica e humanizada para os casos de sofrimento tido como intolerável é a prática de Cuidados Paliativos de qualidade, com intervenção global no sofrimento, introduzidos atempadamente (meses, semanas antes da morte), a par de tratamentos curativos e que não sejam deixados apenas para os últimos dias de vida. 
A nossa missão (profissionais de saúde) é devolver-lhes condições sociais e de saúde que lhes restaure a dignidade, bem-estar, conforto, num cuidado global, compreensivo, prestado por uma equipa multidisciplinar competente, jamais matar intencional e deliberadamente! Sob pena de perdermos a total confiança no próprio sistema de saúde. 
A eutanásia ou o suicídio não são um tratamento médico, e essa prática, a acontecer, introduz profunda insegurança na relação de confiança médico-doente e até a forma como a sociedade olha para os médicos e para os cuidados de saúde.
Considerar neste debate a eutanásia como um ato possível para os Enfermeiros resulta até bizarro, se considerarmos a essência e a natureza da profissão de Enfermagem. Os Enfermeiros cuidam em fim de vida, conferem dignidade aos doentes que se aproximam do fim da sua vida. São provavelmente os profissionais que mais se confrontam com o sofrimento dos doentes, incluindo o sofrimento intolerável. Têm nos fundamentos da sua profissão um conjunto de princípios éticos e deontológicos que os impedem da prática de eutanásia. A Enfermagem é uma disciplina e uma profissão em que todas as ações são baseadas numa intenção “boa” e no bem do outro, é um imperativo Ético!
É importante que os cidadãos mantenham o mesmo nível de confiança nos profissionais que cuidam deles, qualquer que seja a circunstância de vida em que se encontrem, e tenham a garantia de que mesmo no sofrimento intolerável podem reencontrar um sentido na vida, com a qualidade e onde a preservação da Dignidade será uma constante.
Em Portugal existem entre 72 000 e 86 000 doentes a necessitar de cuidados paliativos. De acordo com um estudo apresentado pelo Observatório Português dos Cuidados Paliativos (OPCP) em janeiro do corrente ano, cerca de 51% dos doentes internados nos hospitais são doentes paliativos e cerca de 16% são doentes paliativos com prognóstico de 15 dias ou menos de vida. Dos primeiros, só cerca de 7% e, dos segundos só cerca de 10% estão referenciados para equipas de cuidados paliativos. Porque esta forte preocupação com os que eventualmente possam solicitar esta prática e não nos preocupamos, de igual modo, com os mais de 80 mil que não conseguem aceder aos cuidados paliativos? Esta assimetria é que deveria ocupar um extenso debate!
A humanização do morrer, um facto ineludível da própria vida e não propriamente uma escolha, é incompatível com a eliminação daquele que morre. Quando uma sociedade aceita a premissa de que matar é uma resposta aceitável para o sofrimento humano, a definição de sofrimento que o justifica vai expandir-se continuamente! Refletir sobre estas temáticas prescreve um olhar sereno, científico, técnico, mas sobretudo um olhar humano que possa estar enraizado na dimensão ética da existência humana e respeitar todas as pessoas que estão em intenso sofrimento, assim como aqueles que as acompanham na longa jornada da vida e do cuidar: a família/pessoas significativas e os profissionais de saúde.

Paula Sapeta
Coordenadora do Mestrado em Cuidados Paliativos
Escola Superior de Saúde 
Dr. Lopes Dias
Instituto Politécnico
de Castelo Branco

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