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A eutanasia: A Morte Mansa

- 03/03/2016 - 12:05

Tenho medo dessa morte triste e vagarosa, do seu rasto viscoso na memória daqueles que me amam como sou, na força e beleza de um ser humano inteiro e consciente, sábio e louco, bom e mau, egoísta e generoso. De todas as formas, no entanto, morrerei sempre vivamente contrariada, isso é certo, a atirar os meus últimos pensamentos para a cegonha branca no fundo azul do céu, para o sorriso deles quando eram pequenos e me agarravam a mão. Pelo menos é assim que eu gostava que fosse.

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Tenho em mim todas as liberdades do mundo e ninguém me dirá como viver ou como morrer. Faço escolhas e assumo até ao limite a responsabilidade e as consequências das minhas decisões, sejam elas racionais ou emocionais. No dia em que eu não puder escolher e decidir, já morri, morri para mim, morri de morte sonâmbula, de andar cá sem saber, vagueando no tempo, a devorar os outros com o meu silêncio inexpugnável.
Tenho medo dessa morte triste e vagarosa, do seu rasto viscoso na memória daqueles que me amam como sou, na força e beleza de um ser humano inteiro e consciente, sábio e louco, bom e mau, egoísta e generoso. De todas as formas, no entanto, morrerei sempre vivamente contrariada, isso é certo, a atirar os meus últimos pensamentos para a cegonha branca no fundo azul do céu, para o sorriso deles quando eram pequenos e me agarravam a mão. Pelo menos é assim que eu gostava que fosse.
Mas e se não for? E se a morte não vier mansa, se o sofrimento for muito, a dor aguda? E se eu me sentir engelhada e fraca, uma sombra, um nada? Se não tiver forças para sentir a poesia e a beleza? Se não sentir amor e esperança? Quem serei eu?
Quem serei eu diante da minha morte? É esta a pergunta que me ocorre enquanto ouço a sociedade começar a debater a eutanásia e o suicídio medicamente assistido defrontando-os com a alternativa dos cuidados paliativos, enquadramento que, depois de reflectir, considero um equívoco. 


À vida o que é da vida, à morte o que lhe pertence. Os cuidados paliativos são uma celebração da vida e da dignidade, uma evasão ao desespero e a possibilidade de aguardar a nossa hora com serenidade e vivendo cada segundo até ao último, a sós ou com os nossos, mas vivendo e aceitando a vida com a sua finitude trágica mas imperturbável.


A eutanásia e o suicídio medicamente assistido pertencem a outro reino, ao espaço dos que, com ou sem dor física, desejam morrer. A dor e o desejo da morte não se confundem. O suicídio, tal como até ao presente o conhecemos na nossa sociedade, pode ser a opção de novos e velhos, doentes e sãos e ninguém deve ser obrigado a viver na violência de viver contra a sua vontade. Coisa diferente, porém, é apresentar essas alternativas como se fossem a última opção terapêutica, com veste clínica e urbana. A missão clínica é tratar, curar, debelar a dor – matar a pedido não deveria ser, a meu ver, uma opção institucional, um protocolo médico.
Na Holanda, apesar de ser possível escolher um suicídio medicamente assistido ou um pedido de eutanásia, a maioria dos doentes terminais com sintomas físicos intoleráveis prefere recorrer a cuidados paliativos continuados. Nos programas de morte de Oregon e Washington está documentado que a maioria dos doentes que escolheu o suicídio medicamente assistido o fez com receio de perda de autonomia e dignidade, mesmo sem dor significativa. No entanto, nestes famosos programas, 40% dos doentes que receberam receitas para aviarem medicações letais não as utilizaram e preferiram recorrer aos cuidados paliativos, pois o pedido de eutanásia era, afinal, um grito de socorro e de apoio.
A minha maior dúvida é como traçar a fronteira legal do suicídio permitido. Um indivíduo jovem com uma doença degenerativa que ainda não é incapacitante ou até insuportável, poderá pedir um suicídio assistido? Um doente psiquiátrico que perdeu o seu sentimento de dignidade e sentido da vida poderá pedir um suicídio assistido?
Por vezes a tónica é colocada na dignidade da pessoa humana (quando na realidade o que se quer significar com este conceito, aqui muito mal empregue, é a imagem de si próprio à luz dos valores de cada um), e a amplitude do suicídio medicamente assistido parece enorme, variando de pessoa para pessoa de acordo os sonhos e misérias de cada um, com a frustração e com o desespero. Como se densifica na lei esta “dignidade” do viver bem? 
Mas se o argumento forte for o da liberdade, o delimitar da fronteira então ainda é mais complexo, porquanto a nossa liberdade, mesmo quando não condicionada por circunstâncias diversas, permite as escolhas mais irracionais e violentas. Além do mais, interrogo-me se verdadeiramente exerce a sua liberdade ao escolher a morte quem não recebeu do Estado a possibilidade de escolher a vida, através, por exemplo, de correctos paliativos ou apoio psicológico.
E o que dizer de doentes infantis, de interditos ou deficientes mentais? Deverão estes viver ou alguém virá salvá-los da sua “indignidade” na doença? Este debate, já flamejante em outros países, leva a discussão para a sua verdadeira essência: deve o Estado definir por lei que vidas são dignas de ser vividas ou deve o Estado garantir que todas as vidas são dignas até ao fim?
Tenho em mim todas as liberdades do mundo e aceito-as nos outros. Compreendo que o suicídio ou a morte possam parecer, bem ou mal, a grande evasão de alguma forma de desespero. Mas tenho dificuldade em imaginar as normas que transformariam acções que, neste momento em que escrevo, são crimes punidos com prisão em acções de compaixão.
Na minha modesta reflexão, atrevo-me a dizer que, em primeiro lugar, se o Estado se preocupar em consolidar um sistema universal de cuidados paliativos, a dor não será pretexto para a morte. Mas concluo também que, mesmo sem dor, a morte de cada um é assunto pessoal e intransmissível e a escolha entre a vida e a morte pertence, como sempre pertenceu, a cada indivíduo. Mas que venha o Estado, com as suas leis sempre imperfeitas, dizer quem, quando e como pode matar e morrer, parece-me um exercício jurídico altamente complexo e perigoso. 
A dignidade e a liberdade não pertencem só aos doentes e moribundos. Quererá verdadeiramente o Estado distinguir quando é legítimo escolher morrer, quando devemos sentirmo-nos acabados, quando faz sentido perder o sentido da vida? Com que fundamento permitirá uma morte mansa a um doente quando tantas pessoas sãs desistem, por vezes com brutalidade, de viver?
Não sei como serei diante da minha morte, mas gostava certamente de a guerrear. Talvez nesse momento fraqueje ou talvez nesse momento alguém me aperte a mão, um momento mais para os ver. Acontecerá.
A morte a pedido poderá ser um salto civilizacional, mas talvez seja para trás.
 
Ana Rita Calmeiro
advogada

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