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À Luz do Preto, a partir da exposição do artista António Romão

Leonel Azevedo - 04/05/2017 - 9:04

Os trabalhos gráficos de António Romão são testemunhos e, ao mesmo tempo, herdeiros vivos de uma das mais antigas formas de pintar: a que se expressa sob a arte dos graffiti — de que os “murais” das grutas de Altamira ou Lascaux constituem os primeiros (e inimitáveis) exemplos.

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Terminou (no dia 26 de Março passado) a exposição do artista António Romão, intitulada Luz Negra, que esteve patente na Sala da Nora, do Cine-Teatro, em Castelo Branco. Como é habitual no nosso meio, o trabalho de um artista pouco conhecido e a sua escassa simpatia pelo mediatismo social e, bem assim, a sua original abordagem de temas que não fazem as delícias do gosto do senso comum estão na origem de uma “quase” total indiferença pela sua obra. 
Nas duas visitas que fiz à exposição, interpoladas por leituras que me foram solicitadas a partir dela, resultaram as meditações que agora lhe dedico — para seu incentivo, mais do que para qualquer benefício. Convém adiantar, porém, que as leituras pedidas pela exposição, como pano de fundo para uma melhor compreensão dos temas que os quadros expressavam, das técnicas e cores empregues, começam em Aristóteles (e pela discussão do estatuto das cores na antiguidade clássica), passam pela Idade Média, Renascimento, século XVII e atingem o clímax com o Romantismo (a literatura acompanha o apogeu da cor preta, em poetas como Novalis, Byron ou Nerval), chegando à Idade Moderna — na qual pontificam autores como Goethe, W. Benjamin e Wittgenstein. Isto sem descurar a discussão “polifónica” á volta do preto (e do branco, pólo oposto), desde Leonardo da Vinci a Rembrandt e o aceso debate que pintores e académicos contemporâneos apresentam sobre este tema: por exemplo, a obra desconcertante de Pierre Soulages ou os textos de autores como Kantor, Réau, Panofsky, Pastoureau e Kirschbaum, para apenas citar alguns.        
Em primeiro lugar, o título da exposição expunha, com toda a crueza e frontalidade, um paradoxo. O paradoxo de o negro (tal qual o preto) significar a total ausência de luz, tanto se for considerado pela exposição da escala cromática aristotélica ou pela física newtoniana, de modo que intitular uma exposição de “luz negra” constitui uma contraditio in re — isto é, uma contradição nos próprios termos. Mas o paradoxo é, antes de mais, um desafio e um feitiço, que pintores e teóricos da cor não largaram, desde a antiguidade até aos dias de hoje. De modo que a luz negra acompanha a história da própria humanidade: quer em termos sociais, quer em termos estéticos, quer em termos simbólicos. Por isso, é necessário percorrermos, ainda que seja de forma alinhavada e superficial, a história da cor preta ao longo dos tempos, naquelas três vertentes, para compreendermos um pouco melhor aquilo que se escondia sob o título da exposição de António Romão — e que se materializa na esmagadora maioria dos seus quadros. A questão é tão antiga quanto a arte e a humanidade. O título põe em confronto, portanto, dois conceitos antagónicos e aparentemente inconciliáveis. A sua ligação só se pode fazer através de uma operação que mistura conhecimentos de óptica, de física e de estética. (Nos antípodas desta abordagem que nos propomos realizar já de seguida, o mesmo paradoxo ocupou uma parte do projecto pictórico do pintor Malevitch, a diferença é que ele nunca o quis resolver.)     
Os trabalhos gráficos de António Romão são testemunhos e, ao mesmo tempo, herdeiros vivos de uma das mais antigas formas de pintar: a que se expressa sob a arte dos graffiti — de que os “murais” das grutas de Altamira ou Lascaux constituem os primeiros (e inimitáveis) exemplos. Ou seja, trata-se de uma forma de expressão onde o traço se sobrepõe à mancha e o desenho à pintura. O desenho é quase sempre expressão esquemática, parcial, lacunar; fracciona a realidade por não preencher todo o suporte: é silhueta e não figura. Pelo contrário, a mancha — em especial, a pintura — enquanto composição, procura imitar o real sem com ele se misturar, cumprindo assim a natureza da realidade artística. Precisou de se exprimir artisticamente o primeiro ser humano que deu conta de uma forma bela. Não é menos verdade que a mesma necessidade assaltou o homem que primeiro pressentiu o horror da morte. O ofício do artista consiste, então, em dar vida a formas, como Adão fez com as coisas através das palavras — chamando-as pelo seu nome. 
Nos desenhos de António Romão é o traço negro que domina e guia o espectador, que dá forma à imagem e conduz à escuridão repentina para, de seguida, respirar de novo no branco imaculado do papel; nos seus desenhos a beleza surge como um elemento supletivo (tal e qual como a cor). No contorno do traço, seja ele nítido ou esfumado, assoma constantemente o elemento trágico: como se o poder das trevas ou o esgar da morte espreitasse em cada forma. O recurso ao preto (sobre o branco) torna-se o meio privilegiado de ensaiar os seus golpes e exprimir o seu terror: tal e qual como na vida, um instante de felicidade pode ser o prenúncio da fatalidade que se segue. Em meu entender, é no retrato e no auto-retrato (o rosto como apresentação clássica dos predicados da alma) que melhor se expressa a linguagem pictórica de António Romão. 
Mas a luminosidade do preto não nasceu por geração espontânea, demorou anos, séculos a depurar. Desde as discussões de Aristóteles sobre o eixo cromático (e de outros autores na Grécia antiga) que a cor preta (e a branca como sua legítima e natural opositora) fazia parte da paleta de pintores, teóricos e do mundo do homem comum. Era uma cor no sentido habitual da palavra e assim se manteve a sua compreensão, com altos e baixos, até ao fim da Idade Média. Apesar de não termos hoje documentos gráficos (pinturas, esculturas, monumentos…) com as suas cores originais, pois o acesso á documentação colorida cobre milhares de anos de transformações químicas, alterações cromáticas que a passagem do tempo produziu sobre os objectos artísticos, para não falar em repintagens, envernizamentos sucessivos e outros processos de estabilização — os quais estão muito longe de nos assegurarem a devolução das tonalidades primitivas. Muitos desses testemunhos icónicos levantam problemas insolúveis: a arte rupestre era para ser “vista” a um certo ambiente de luz (nesses primeiros museus e santuários ao mesmo tempo), os frescos da Capela Sistina, os painéis de oratórios ou as pinturas encomendadas para pinacotecas particulares, todos estes testemunhos existiam e eram contemplados em ambientes muito diferentes da excessiva luminosidade actual — para não falar da luz artificial. Os pretos da antiguidade, julga-se, era muito mais baços — e uma das razões, claro, consistia no facto de eles serem obtidos a partir da carbonização vegetal (de paus, raízes, cascas…), animal (de ossos, chifres…) ou então por processos de tinturaria arcaicos. No entanto, a gama dos pretos era riquíssima e variada. Ao mesmo tempo, descobriu-se o óxido de manganês e o preto passou também a ter brilho. A bem dizer, em quase todas as línguas de origem indo-europeia existem duas palavras para diferenciar os tons opacos dos brilhantes, tanto do preto como do branco. A gradação entre preto e negro não é, de forma alguma, ociosa. Desde sempre o preto (e em poucas civilizações algumas tonalidades de vermelho ou ocre) foi a cor preferida para desenhar e, não só, mas também em virtude disso, tornou-se uma cor de grande significado no plano social e no plano simbólico. 
No plano social, basta lembrar aqui a longa história do vestuário e o significado que esta cor assumiu ao longo dos séculos. Se exceptuarmos o hábito negro dos beneditinos (ao qual eles atribuíam valores como o da humildade, pobreza, penitência e temperança), a indumentária negra esteve quase sempre associada á morte, à bruxaria e às forças maléficas, em geral. No fim da Idade Média, a valorização dos tons negros (pretos, cinzentos e castanhos) assumiu proporções nunca vistas: classes importantes, tanto do poder como do saber, vestem-se de negro: magistrados, membros do clero e, um pouco mais tarde, professores universitários, banqueiros e outras. O preto perde grande parte da sua ligação  tradicional à esfera do mal e assume-se como a cor que melhor traduz os valores de autoridade, austeridade, poder e até virtuosismo. Aliás, é sobretudo no século XV que estabiliza a moda do preto no luto, em especial nas casas reais, indicando portanto a sua proximidade à realeza, à dignidade, ao dó e à circunspecção. É também o século XV que protagoniza uma das maiores revoluções (da compreensão da e) da sensibilidade à cor: trata-se da maior divulgação do preto (e do par de opostos, preto vs. branco) que alguma vez tivera lugar. Duas invenções estão na base desta vulgarização e da sua consagração: a invenção da imprensa e a da gravura. Livros e imagens acabarão por criar um padrão cromático que se vai impor até ao meio do século XVII — mais precisamente até Newton descobrir o espectro e cristalizar no círculo cromático ideias que há mais de um século estavam em movimento. As especulações sobre o arco-íris foram o ponto de partida para esta notável descoberta. As cores primárias e as complementares são conceitos que só estabilizam no século XIX. Do meio do século XV até ao meio do XVII, nunca o branco e o preto estiveram tanto na moda. Sobretudo na primeira metade do século XVII, o preto impera e retoma a valorização negativa da tradição. As pestes, as guerras e a intolerância religiosa e social ajudam a espalhar a sua aura maléfica e satânica. A condenação de pessoas com desvios comportamentais atinge números assustadores — e as vítimas da inquisição são apenas uma fracção delas. O preto toma aqui a coloração do Mal. São os textos de  Giambattista della Porta, Huygens, Kepler, Galileu e Descartes que abrem clareiras no meio da escuridão do século XVII. O novo sistema cromático assente sobre as sete cores do arco-íris irradia uma luz nova e domina os grandes temas da óptica e da física da cor até ao século XX. O branco está implícito na ideia de luminosidade e, à luz da teoria newtoniana, contém mesmo todas as cores, mas o preto está literalmente erradicado do espectro — é a ausência total de luz, portanto a ausência de cor. A nossa concepção actual ainda é herdeira desta ideia. Contudo, o período romântico, quer na pintura quer na literatura (e até em outras expressões artísticas), veio conferir um lugar especial ao preto. A melancolia transforma-se em ideal poético: o gosto pelas ruínas, pela noite e pelos cemitérios encanta espíritos melancólicos. Pelo contrário, no dia a dia, o negro retoma um leque de sentidos pejorativos com a chegada da revolução industrial (como a sujidade dos operários e a poluição), para no fim do século XIX a reprodução em série (na arte e nos objectos utilitários) inundar todas as áreas da vida humana com novidades tecnológicas preferencialmente monocromáticas em tons negros: os primeiros electrodomésticos e máquinas (como a de escrever e o telefone) ou o primeiro automóvel Ford. Talvez esta vaga se deva, em parte, ao sucesso e sublimação artística da fotografia a preto e branco durante quase um século — e que o cinema, mais tarde, também cultivou. (Grandes génios da sétima arte, como S. Eisenstein, não admitiam filmar a cores. Esta tirania do preto e branco só seria destronada por volta do meio do século XX. Seja como for, o preto constitui-se, desde tempos imemoriais, como motivo de pesquisa, de enigma e de admiração para muitos homens célebres do mundo artístico.               
No plano simbólico, sempre pesou sobre o preto uma forte carga negativa: associado ao caos e às trevas — que as narrativas cosmogónicas e a bíblica imortalizaram —, foi difícil emergir do preto um significado que superasse essa conotação. Imensas expressões do quotidiano ainda lembram esse pendor negativo e constituem uma gramática peculiar de uma das mais poderosas cores da cultura ocidental: fazer humor negro; ser a ovelha negra, praticar mercado negro, fazer magia negra, figurar na lista negra ou então ter comércio com o príncipe das trevas (o Diabo), sem esquecer verbos como denegrir (cujo radical é o termo negro). Mais poderosa ainda talvez seja a ligação entre o preto e a morte, que o período de nojo, na cultura cristã, tão claramente ilustra, bem como a expressão popular de chegar a “hora negra” (como sendo a hora da morte — tão presente na poesia clássica latina) também evoca. 
Em muitos outros quadrantes da cultura ocidental a oposição entre branco e preto é abundante. Por exemplo, em áreas que a antropologia explora, o corvo — preto — animal inteligente, ligado à adivinhação, aos presságios e às superstições (na etnografia regional, dois ou mais corvos que crocitem quando atravessam um povoado é sinal de morte iminente de alguém). Ao invés disso, a pomba — branco — sinal de pureza, de glória e símbolo de vida espiritual.     Curioso observar que o jogo de xadrez desenvolveu-se a partir da oposição entre o branco e o preto, para marcar claramente a oposição entre os dois jogadores enquanto adversários.
No plano estético, a cor preta motivou várias interpretações, deu origem a estudos entusiasmados, mas também a repulsas preconceituosas e a paixões desenfreadas. Para Leonardo da Vinci o preto não era uma cor. Ticiano, mas sobretudo Rembrandt, dedicou-lhe uma atenção fundamental (ao ponto de  explorar toda uma gama de tonalidades de preto), de modo que há críticos que falam mesmo no preto luminoso de alguns quadros seus. (Embora não se possa dissociar a admiração de Rembrandt pela cromofilia do preto, cultivada pelo protestantismo e pela Reforma.) Renoir foi mais longe ao afirmar que o preto era a rainha das cores. Gauguin conseguiu obter pretos com misturas inéditas de pigmentos. 
Ora, no meu ponto de vista, os quadros de António Romão herdam, no sentido genético do termo, traços esquemáticos que a cultura europeia espalhou ao longo dos tempos: o desenho a tinta preta é a sua marca predilecta — a sua marca de água. Como se o preto fosse o contorno da sombra daquela tradição sob a qual os seus traços hesitantes reconstituem, em síntese, o mundo das figuras que desenha, seja Dostoiévki ou Artaud, seja Elvin Jones ou Duke Ellington. De modo que ao olharmos os seus quadros, dependurados contra o branco da galeria, é como se desfilasse à nossa frente uma série de partículas que atravessaram séculos e brilham — e ofuscam — de negro brilhante a história dos nossos antepassados. 

Leonel Azevedo 

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