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Leitores: A tarde azul

Maria João Fernandes* - 15/02/2024 - 9:39

Com o título “Tarde Azul, o Universo Amoroso de Júlio/Saúl Dias”, encontra-se atualmente no Museu Tavares Proença de Castelo Branco, e até 7 de abril, uma magnífica exposição que convidamos todos os albicastrenses a visitar.

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Com o título “Tarde Azul, o Universo Amoroso de Júlio/Saúl Dias”, encontra-se atualmente no Museu Tavares Proença de Castelo Branco, e até 7 de abril, uma magnífica exposição que convidamos todos os albicastrenses a visitar, da obra plástica e poética do artista mais emblemático da Revista Presença, precursor da modernidade e um dos nomes maiores da arte do século XX em Portugal. Julio é ainda um expoente do nosso lirismo de que foi notável intérprete, um lirismo solar evocando a atmosfera da “tarde azul” que dá o título à mostra, paraíso revisitado do casal de namorados, personagens que o seu génio imortalizou. Uma arte cuja dimensão poética total, a presente exposição nos permite apreciar e que será objeto a 28 de fevereiro de uma abordagem/visita guiada pelo grande Professor e Historiador de Arte Fernando António Batista Pereira que irá ainda apresentar a 2ª edição da Monografia sobre Julio da autoria de Maria João Fernandes, Edição Imprensa Nacional Casa Moeda. Posteriormente será igualmente apresentada a Antologia Tarde Azul de poemas de amor de Saúl Dias e desenhos de Júlio, pelos Comissários da Exposição.

 

Saúl Dias

Desde o inesquecível momento (meados da década de 70) em que conheci Julio em Vila do Conde, a sua lição, a mágica aliança entre realidade e sonho da sua obra evoluíram ao sabor das estações, das ilusões e das penas que todos experimentamos sem perder o halo misterioso da tarde azul que ilumina os nossos passos com o esplendor do arquétipo, reino prometido a um olhar e a um coração inocentes. 
É essa lição que hoje importa lembrar a propósito da mostra que lhe é dedicada e celebra o centenário do seu nascimento. A primeira até hoje, a equacionar verdadeiramente o diálogo da sua pintura com a sua poesia, que comissariei com o também poeta artista Gonçalo Salvado. 
A exposição representa mais do que uma homenagem, um vibrar em uníssono de almas irmãs reconstituindo a “história” que Julio sabia presidir ao seu universo (“A quem hei-de contar a história que inventei?”, “A Minha História”), de um modo subtil, ao compasso dos sonhos e das atmosferas da alma, não respeitando a cronologia, tal como o poeta, para quem o amor era o vinho, o sangue e a chama rubra que incendiava o tempo e reverdecia a natureza. Uma história que reconstitui o destino da existência humana, da nostalgia secreta do paraíso, à apoteose de uma juventude que é também a das formas do mundo, à ameaça da noite e à afirmação gloriosa da Vida, eterna Primavera do espírito e da alma. 
Entre o azul dos sonhos, da água, do céu e do feminino e o vermelho de uma realidade terrestre, ígnea, solar e masculina, anima e animus, polos de uma alquimia secreta, evoluem a música e a sedução da palavra e da imagem em busca de um arquétipo de perfeição que explode no símbolo da rosa, emblema de totalidade e de perfeição que já seduziu Dante. 
Perpassa na poesia de Saúl Dias amplamente representada na exposição, a atmosfera azul, cor do sonho e do imaginário, celeste e solar acompanhando ímpeto ascensional das personagens no desenho e na pintura de Julio, juntando realidade e sonho, diluindo todas as distinções, refazendo o misterioso ciclo da vida, em todas as delicadas nuances deste universo. 

Um novo olhar sobre a obra de Julio/Saúl Dias
O sol e a luz do amor
Eras uma flor inventada
com milhões de sóis em cada pétala.
Saúl Dias

Tantas palavras e tantos anos volvidos sobre a monografia que lhe dediquei e inaugurou verdadeiramente o meu percurso de crítica de arte, esta escolha de pinturas de Julio em sintonia com os poemas de Saúl Dias representa um olhar novo sobre a sua arte, o desvelar da essencial pureza do seu universo, flor nascida do fértil húmus dos arquétipos. Julio retratou o Paraíso, mas com tal doçura, com tal encanto e transparência que este brilho doce e inefável conseguiu sobrepor-se às trevas de um inferno que ele soube denunciar na sua poesia e na sua pintura, no grotesco e no egoísmo de uma vivência contemporânea.
Amor e saudade são quase sempre inseparáveis no nosso lirismo. A saudade ou a nostalgia ecoam também no verbo luminoso e musical de Saúl Dias e na arte de Julio, revelam um paraíso possível, amado fruto da Vida, cujo encanto se liga à melancolia íntima de uma perda que se anuncia com a passagem do tempo, ele também azul (“a teia azul das horas descuidadas”, “Província”) para logo reviver o sortilégio da presença da mulher amada, colorida a tons de azul (“toucada de laços azuis”, “Nua” – V e de “rosas de um azulino tom”, “Retrato”). 
O clima dos amores felizes e primaveris é invadido pelas sombras da nostalgia de uma perfeita felicidade, roubada pelo correr dos instantes, eles também azuis (cf. “Esse minuto redondo, / que eu revia em azul puro”). A dinâmica da presença e da ausência, da assunção e da perda motivada pelo tempo é conduzida pelo sonho na poesia de Saúl Dias e na pintura de Julio, ambos retratando o “Poeta errante,/ de olhar vago e distante/ e azul” (“Poeta”), olhar de uma tonalidade onírica, recetivo a todos os registos do consciente e do inconsciente e mesmo do supra consciente identificando o nível mais alto do conhecimento. 

Nostalgia do Paraíso e afirmação da vida
“(…) la esperanza
de este amor infinito (…).

Alfonsina Storni

Vemos acentuar-se o clima de perda, quer na poesia quer na pintura dedicadas ao velho poeta, representadas na última sala da exposição, sem que se desvaneçam o encanto e a sedução deste universo musical e do seu espaço privilegiado, a província, animados pelo luminoso halo da mulher (“Poeta VI”) e pelos seus mil feitiços (“Desaparecida I”) que se espraiam  em mágicas “ondas azuis” que fazem perdurar a “alma das horas relembradas”, “O tempo”), ressuscitando o paraíso de uma tarde que eternamente recomeça.
Paraíso deste mundo, dos amores felizes e inocentes, ainda que em pano de fundo na pintura e na poesia de Julio/Saúl Dias nos assombrem as figuras da comédia trágica onde todos somos personagens. Entre a realidade e o sonho, a arte de Julio alimenta-se do sopro original dos arquétipos, fonte intemporal de beleza e de luz que soube captar, cintilação da “tarde azul”, imagem fundadora da sua poesia, com “as rosas doiradas do silêncio” perfumando “as horas mansas,/felizes como o riso das crianças”.
Da realidade a grande poesia extrai naturalmente a seiva do arquétipo e deslumbram-nos a sua respiração e o seu brilho. A tarde azul cristaliza as formas íntimas do éden numa primavera fugaz que o milagre da poesia faz eterna. Sob o signo da amada que tal como a lua se revela e se esconde, em aparições anunciadas de uma doçura, de uma obscura luminosidade de deusa florescida em luz e perfume. 
Mulher menina, desenhada com palavras que são música e com os traços e as cores de uma paleta capaz de sintetizar toda a beleza, acompanhando o amado, personagem de um romance autobiográfico que ascende à condição de figura do imaginário e da alquimia. Animus e anima, o espírito e a sensibilidade, o Rei e a Rainha de núpcias alquímicas entre o céu e a terra, a água e o fogo, conduzindo à perfeição e à totalidade de que a rosa é o símbolo. Entre o azul da água, reino do sono, da morte e do sonho em que Ofélia representa o arquétipo de absoluta pureza e o vermelho, polos de uma dualidade alquímica, arde a eterna chama do amor que alimenta a arte de amar de Julio e a arte poética de Saúl Dias, reunidas numa só, no simultâneo brilho da palavra e da imagem. 
A realidade sensorial, sensual, musical, exuberante de cores e perfumes, jardim florido é o espaço em que evolui a amada que se possui e que sempre escapa, metáfora de um intemporal mistério, assombração querida, num jogo e numa dinâmica refletindo o élan para o divino que subjaz ao destino humano e o ilumina.
Diálogo da palavra e do arabesco, expressão de mágica síntese, a obra de Júlio apresenta-se hoje, uma vez mais, como a resposta do sonho, alternativa aos erros da civilização, para ser vivida e amada, como só os grandes criadores, e raros o foram ou o são, nos oferecem, vinho inebriador para os sentidos e a alma. 
A tarde recomeça hoje uma vez mais, essa tarde azul, tesouro íntimo e luminoso da poesia de que hoje somos espectadores, mas também, e ainda, comovidamente, intérpretes.

*Crítica de Arte – AICA, Associação Internacional de Críticos de Arte, Poeta.

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