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Cata - Ventos: A forma justa

Costa Alves - 27/01/2022 - 10:28

Escrever é um prazer, mas às vezes não é. Garanto que esse “às vezes” acertou-me em cheio neste dia de não ter assunto ou de não me apetecer ter assunto ou não ser capaz de o ter. No próximo domingo, terei um assunto entre mãos, um papel dobrado em quatro por uma sociedade que nunca mais atingimos: muito mais justa e muito menos desigual. 
Hoje não tenho assunto. Quando entro num deserto assim, fujo deste mundo e escolho outro bem mais próximo do que a vida poderia ser. Sem cartazes de fala só, sem refregas televisivas de torturar o sentir e o pensar, refugio-me na poesia e convido o leitor a seguir comigo alguns dos caminhos que a poesia abre com a sua forma única de inteligir. 
“A FORMA JUSTA” - poema de Sophia de Melo Breyner: “Sei que seria possível construir o mundo justo/ As cidades poderiam ser claras e lavadas/ Pelo canto dos espaços e das fontes/ O céu o mar e a terra estão prontos/ A saciar a nossa fome do terrestre/ A terra onde estamos - se ninguém atraiçoasse - proporia/ Cada dia a cada um a liberdade e o reino/ - Na concha na flor no homem e no fruto/ Se nada adoecer a própria forma é justa/ E no todo se integra como palavra em verso/ Sei que seria possível construir a forma justa/ De uma cidade humana que fosse/ Fiel à perfeição do universo// Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco/ E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo.”
O AR E A TERRA. Interrogar a composição do ar e as suas alterações proclamando com Luíza Neto Jorge: “O ar/ é a casa mais alta/ - a mais rica -/ desta aldeia.” E nunca esquecer esta sábia sentença atribuída a índios da América do Sul: “Não herdámos a Terra dos nossos pais; pedimo-la emprestada aos nossos filhos.”
MUNDO. Chegar ao mundo com Maria Teresa Horta: “Não sabe mais/ o visionário/ idealizar o mundo/ Se entretanto se apagou/ a claridade em nós/ E a esperança/ morre a sós/ cada segundo/ sem conseguir/ amar/ escapar ao absurdo/ Reacender a esperança/ esquecendo o mais atroz/ de tudo o que se fez/ de mais imundo/ Mas o sonho/ não pretende/ a queda até ao fundo/ nem o poeta perder/ a sua voz/ a querer salvar o mundo/ Tocando/ a poesia a treva alheia/ com versos/ de soneto e libertar/ Pois se o Mundo/ é feito de mudança/ Nós vivemos nele/ para o mudar”.
IMAGINAÇÃO. Na sua casa infinita com Ana Hatherly: “A imaginação/ ergue-se do arrepio da sombra/ guerrilha entre parênteses/ ergue-se da constante chacina/ procurando outra coisa/ outra causa/ o outro lado do ver.”
HISTÓRIAS ENCANTADAS. São cada vez mais necessárias a um mundo que despreza as inocências genuínas. Leia esta pequena história de António José Forte: “Era um grande ilusionista/ Engolia três rosas pequeninas/ e em seguida tirava da boca/ um quilómetro de serpentinas./ Uma noite chegou ao meio do circo e disse:/ respeitável público de meninas e meninos/ hoje quero fazer-vos uma surpresa/ Atenção!/ Mastigou as tais três rosas pequeninas/ muito bem mastigadas/ abriu a boca e em vez de serpentinas/ saíram três pombas encarnadas/ uma foi para o Brasil/ a outra voou para a China/ a terceira mais pequena não saiu de Portugal/ e o ilusionista?/ Deitou a língua de fora e foi-se embora/ Mais nada?/ O respeitável público de meninas e meninos deu uma grande gargalhada/ Fim desta história encantada.”
Não tinha assunto. Mas, não ter assunto, não me apetecer ter assunto ou não conseguir ter assunto, pode ter assunto. Assim seja. A poesia deseja “A Forma Justa” e devíamos ter caminhos para lhe chegar.

mcosta.alves@gmail.com

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