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Cata -Ventos: Estamos todos queimados outra vez

Costa Alves - 28/07/2022 - 11:28

7 de agosto de 2003. Isto ainda está quente e nós só reagimos a quente. Estamos a ferver incendiados por uma aflição, um vazio queimado, uma resignação. Não é a primeira nem a milésima vez que a desgraça nos bate assim à porta, mas sentimo-la sempre como única e irrepetível. Temos esta doença incurável a arder dentro de nós.
Quem se recorda de Armamar em setembro de 1985? 14 bombeiros mortos e 146 254 hectares (ha) ardidos no ano. E de Águeda em junho de 1986? 13 (ou 16?) mortos. E de Bragança em 1987? 5 mortos. E da Covilhã e do Fundão em 1991 (182 486 ha)? 1 morto e 300 desalojados. E de Arganil em setembro de 1992? 4 mortos. E de Mação, Vila Velha de Ródão, Monchique, Vila de Rei, Pampilhosa da Serra, Mação, Sintra? E dos episódios de 1991 e 95 (169 612 ha) que nos queimaram quase toda a alma? O vento leste furioso e indomável tudo varria em menos de um fósforo. E tantos outros lugares apagados nos mapas da memória.
Onde estão as lições que se retiram do que magoa? Quem não mudou o que teria de mudar? Quem não nos defendeu deste futuro que abate a ruralidade e torna a interioridade uma inferioridade curvada para o deserto?
Este nosso país de meias tintas tem memória curtíssima e só se manifesta empoleirado nas árvores queimadas da emoção. Depressa esquecemos o que gritámos, o que chorámos sobre tanto leite derramado, as práticas que maldissemos, as promessas que os governos soltaram. Tantas vezes juraram que não haveria de ser como antes, tantas vezes disseram que sabiam tudo e, afinal, não sabiam o que era sua obrigação saber e fazer.
Como quem não quer a coisa, no dia seguinte, voltamos às rotinas, fechamo-nos outra vez nas meias tintas onde se apagam esperanças de futuro e nada acontece que altere este destino sem destino de apenas lamentar a desgraça quando irrompe. Seremos capazes de conseguir que seja desta? Ardidos pela dor e consumidos pela impotência, jurámos todos, governantes e governados, mas tudo a retórica levou. A política manteve-se no deixa-andar das vistas curtas do agora, saltitando de campanha eleitoral em campanha eleitoral com o país a ser todos os dias derrotado.
Isto escrevia eu neste jornal no dia 7 de agosto em pleno decorrer da onda de calor de 2003, entre 29 de julho e 14 de agosto. Uma onda de calor muito intensa e de longa duração. Faleceram vitimadas pelos incêndios 21 pessoas, das quais 4 bombeiros, e arderam 471 750 ha. Desde 2003 até mais este ano fatídico de 2022, não esquecendo 2017 (539 921 ha) e 2005 (346 718 ha) ocorreram mais do triplo de anos com ondas de calor estivais do que os decorridos entre 1981 e 2002. Depois da grande tragédia de 2017 investimos muito e melhorámos no sistema de combate e socorro. Mas estaremos condenados a ter de suportar suplícios de Tântalo com o ingovernável ordenamento florestal que a História fez e que o despovoamento expõe em carne viva.
À incapacidade de reformar estruturalmente a ocupação do território acresce a existência de uma outra frente de calamidade produzida pelas ondas de calor e que é social e politicamente ocultada. 
O país não possui planos de emergência de proteção civil para enfrentar a sobremortalidade que lhes está associada. Planos como os que possui para os fogos rurais. Há dias, a DGS informou que, entre os dias 1 e 16 deste mês, se registou um excedente de 1 300 óbitos devidos calor extremo e o país reagiu como se não fosse nada. Desde 2003 que andamos a exigir medidas para este gravíssimo problema. Nesse ano a onda de calor originou 1 953 falecimentos.

mcosta.alves@gmail.com

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