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Cata Ventos: No Saara Ocidental

Costa Alves - 30/06/2022 - 9:39

Na segunda metade dos anos 1970, recebemos no CIDAC (hoje Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral) representantes da Frente Polisário, que queriam relacionar-se connosco, Comissão para os Direitos do Povo Maubere. Traziam-nos o drama do seu país, um drama da mesma natureza do de Timor em que nos empenhávamos. Também tinham a sua terra invadida desde 1975. Marrocos e Mauritânia impediam a realização do referendo de autodeterminação que a Assembleia-Geral da ONU impusera a Espanha e repartiam dois terços da ocupação militar pelo primeiro e o restante a sul pelo segundo. Tal como no caso de Timor, as potências da geopolítica aprovaram.
O Saara Ocidental fica a sueste das ilhas Canárias. Lembram-se do Cabo Bojador? Antes era Cabo Não que merecia o aviso deste nosso ditado marinheiro: “Quem passa o Cabo Não, voltará ou não.” É uma proeminência costeira que tinha efeitos muito adversos na navegação marítima da época. A persistência transforma o Cabo Não em Bojador (de Boujdour) e Fernando Pessoa reflete-o na sua “Mensagem”: “Quem quer passar além do Bojador/ Tem que passar além da dor”.
Após a invasão, a Frente Polisário, reconhecida pela ONU como representante do povo saarauí, declara a República Árabe Saarauí Democrática (RASD) com governo e imensos campos de refugiados no exílio de Tindouf, na Argélia fronteiriça. Em 1979, a Mauritânia arrepende-se da aventura e sai de onde não devia ter entrado. Marrocos acentua a pressão repressiva e constrói, entre 1982 e 1987, seis muros que cortam zonas do território ocupado até chegar ao 6º muro que assegura uma fronteira física de 2 720 quilómetros com o território agora administrado pela RASD, entretanto reconhecida como membro da União Africana. Mais um paradoxo: a organização dos países africanos integra Marrocos e Saara Ocidental, ambos com estatuto de país independente. 
Detenhamo-nos junto ao muro-fronteira. Tem proporções inéditas nos tempos modernos. Nem o muro construído por Israel na Cisjordânia chega a metade da extensão deste. Além da cerca de areia e pedra, integra abrigos fortificados, valas, trincheiras, arame farpado, minas terrestres, monitorização por sistemas de deteção eletrónica, tudo defendido por milhares de militares. Para país com tanta miséria, é mais um insuportável paradoxo.
Em 1991, o ocupante é compelido a conversar sobre um projeto de paz da ONU que inclui negociações e um acordo de cessar-fogo com a Frente Polisário. Mas, a ONU não demonstra capacidade para impor o processo de autodeterminação e, em novembro de 2020, os saarauís voltam a pegar em armas reagindo a operações militares marroquinas.
Há dois anos, os EUA reconheceram a anexação em troca do reconhecimento marroquino de Israel e o governo espanhol fez o mesmo há dois meses. Cedeu à chantagem encenada pelo governo marroquino no ano passado, quando injetou vagas de refugiados no enclave de Ceuta em resposta à hospitalização, por Covid, em Espanha, do presidente da RASD, Brahim Ghali.
O Saara Ocidental tem 286 000 km² de área e possui as maiores jazidas de fosfato do mundo, além das de cobre, urânio e ferro. Muitos sarauís vivem em campos de refugiados em Tindouf, na Argélia, e emigrados ou exilados em Espanha. “Estamos a viver [dizem] uma experiência que os nossos antepassados, nómadas consumados, nunca imaginaram”. O poeta Limam Boisha quer voltar ao céu do seu país onde “Deus apenas semeou estrelas e desejos”. E uma outra voz refugiada garante: “a minha terra, lugar de onde venho, [é] para onde vou”.
mcosta.alves@gmail.com

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