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Cata-Vento: Os pés e o pântano

Costa Alves - 13/01/2022 - 8:31

Não damos valor aos pés. Não são apenas os podólogos a dizê-lo. Os pés são para carregar e toca a andar. São os pés que vão a pé e nos levam com eles. Como julgamos que só as mãos é que trabalham, os pés passam por ser uma espécie de rodado para nos transportar. Na verdade, damos e damo-nos com as mãos, embora seja ilusório supor que a expressão da vontade, do gosto e do desejo está nos dedos e na palma das mãos.

Pensando melhor, fazemos muito mais com os pés do que julgamos. Há ir a pé, de pé atrás, com pezinhos de lã e há não se ter de pé ou ficar a pé, em pé, ou não. Há pôr o pé em ramo verde e fazer um pé-de-vento que não sabemos como enfrentar. E há o macaco velho que não põe o pé em galho seco e, sabendo tanto, sabe que a doença vem a cavalo e vai a pé, como sentenciam os avós de antanho. Além disso, é preciso ter cuidado com os peões, pois as ruas pedonais ainda têm pegadas muito curtas. E, quanto a pedaladas, a madrugada ainda tem que andar muito até amanhecer.

Na verdade, não se pode dizer que os pés não trabalham. E que não dão. É com eles que damos com os pés erguendo os nãos que não voltam atrás. Bem sei que damos pouco com os pés. Preferimos deixar andar, não atar nem desatar, prolongar, adiar, logo se vê, vamos esperar o que vier. Encurvamo-nos e pode ser que ganhemos a ilusão de ter pé para andar com os pés no chão. E as mãos? As mãos ficam a gozar os rendimentos esperando que os pés façam o trabalho mais pesado.

E cá vamos andando e desandando julgando que o pântano tem sempre pé, mesmo em contrapé, ou pé ante pé com caixinhas de rapé para mastigar resignações. O pântano sabe muito. Mergulhados em precariedades, não desistimos dele nem de ser como ele. É tramado. Se lhe dermos o pé, toma-nos a mão. Se lhe dermos a mão, vamos com ele e não sabemos onde pomos os pés ou, até, se temos pé. Se estamos atolados, nem mãos nem pés se salvam ensopados em resignação. Nem sol nem chuva cá chegam, por mais que o sol vá para a eira e a chuva para o nabal.

Dizer pântano é uma forma fácil de tapar o sol com uma peneira. Resume tudo e não esclarece. Não pensamos como chegámos, como estamos e como podemos sair das suas águas salobras. É apenas estagnação, lodaçal, charco, atoleiro, lameiro, pantanal, sapal, paul e, em muitos latitudes, é, também, paludismo ou malária; isto é, mau ar. Bendita esta nossa língua que tantos matizes permite distinguir.

É claro que há muitos pântanos. Há o pântano do ar carbónico que injetamos na atmosfera – e já andamos com este assunto às costas há 30 anos e estamos longe de chegar para ele. Há o pântano da desigualdade no mundo e em cada país. O pântano dos naufrágios mediterrânicos e o pântano das vacinas que não chegam aonde também devem. Há tantos que não tenho espaço para convocar mais alguns dos demais. Mas, deixem-me puxar um que está connosco ou ao pé de nós. O pântano das vidas jovens estagnadas.

Vidas sem eira nem beira. Casa dos pais e logo se verá. Vidas incertas, inconstantes, provisórias, inconsistentes, arriscadas, indefinidas, inseguras, precárias. Digamos: vidas colcenterizadas, uberizadas, troikizadas - enfim, aportugueso o que consigo dos barbarismos a que somos obrigados. Ouço o que dizem as vidas estagnadas e sinto que ninguém verdadeiramente lhes liga, cada um na casa do seu botão e, claro, salvo as obrigatórias exceções, não conseguem abrir um trilho na selva em que foram largados. É o que o pântano quer para continuar o seu trabalho de pântano.

mcosta.alves@gmail.com

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