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Cata-ventos: Poesia ajuda a curar

Costa Alves - 23/09/2021 - 10:05

Este tempo é muito difícil de atravessar. Hoje não consegui encontrar um assunto que me envolvesse com autenticidade. A cidade não sabe nem quer ler-se e entender-se. Muito menos interpretar o que foi e o que poderá vir a ser. A cidade está doente. Está frivolamente alheada. Perdida em caminhos que não caminham. Não sabe por onde e para onde quer ir.
Defendo-me com poesia. A poesia pode distanciar-nos do lamaçal e ajudar-nos a sobrevoar o que não tem conserto. À sua maneira, a poesia ajuda a curar.
1 - “No dize-tu-direi-eu/ havia um que dizia/ quer dizer é como quem diz/ que o mesmo é não dizer nada/ tenho dito.” Alexandre O’Neill, Discurso.
2 - “Você tem-me cavalgado/ seu safado!/ Você tem-me cavalgado,/ mas nem por isso me pôs/ a pensar como você.// Que uma coisa pensa o cavalo;/ outra quem está a montá-lo.” Alexandre O’Neill, A história da moral.
3 - “Os Convencidos da Vida// Todos os dias os encontro. Evito-os. Às vezes sou obrigado a escutá-los, a dialogar com eles. Já não me confrangem. Contam-me vitórias. Querem vencer, querem, convencidos, convencer. Vençam lá à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear.” Alexandre O’Neill.
4 - “(…) Dirás como trabalhamos em silêncio,/ como comemos silêncio, bebemos/ silêncio, nadamos e morremos/ feridos de silêncio duro e violento (…)”. Egito Gonçalves, Notícias do Bloqueio.
5 - “As palavras aproximam:/ prendem-soltam/ são montanhas de espuma/ que se faz-desfaz/ na areia da fala// Soltam freios/ abrem clareiras no medo/ fazem pausa na aflição// Ou então não:/ matam/ afogam/ separam definitivamente// Amando muito muito/ ficamos sem palavras.” Ana Haterly.
6 - “(…) Quando havia antes um antigamente/ havia uma esperança/ agora no próprio coração da ilusão/ onde a água limpa as pedras das ruínas/ entre destroços límpidos/ deito-me sobre a minha sombra e durmo/ e durmo (…)” António Ramos Rosa, Que cor ó telhados de miséria.
7 - “Uma cidade pode ser/ apenas um rio, uma torre, uma rua/ com varandas de sal e gerânios/ de espuma. Pode/ ser um cacho/ de uvas numa garrafa, uma bandeira/ azul e branca, um cavalo/ de crinas de algodão, esporas/ de água e flancos/ de granito.// Uma cidade/ pode ser o nome/ dum país, dum cais, um porto, um barco/ de andorinhas e gaivotas/ ancoradas/ na areia. E pode/ ser/ um arco-íris à janela, um manjerico/ de sol, um beijo/ de magnólias/ ao crepúsculo, um balão/ aceso// numa noite/ de junho.// Uma cidade pode ser/ um coração,/ um punho.” Albano Martins, Uma Cidade.
8 - “Ninguém pode dizer que a água segue/ ao contrário da sua luz/ (isto é: no reverso sentido/ do seu ardor) (…) Na verdade/ ninguém pode dizer da água/ o que não sabe/ Mas sabendo/ ninguém pode calar a feroz rede/ dos seus percursos/ o nítido clarão dos seus desvios/ e o esplender (o fio)/ dos seus segredos.” João Rui de Sousa, Dizer do que se sabe.
9 - “De que armas disporemos, se não destas/ Que estão dentro do corpo: o pensamento,/ A ideia de polis, resgatada/ De um grande abuso, uma noção de casa/ E de hospitalidade e de barulho/ Atrás do qual vem o poema, atrás/ Do qual virá a coleção dos feitos/ E defeitos humanos, um início.” Hélia Correia.
10 - “Confesso não ser/ domável/ digo não aos malfeitores/ Desobedeço e repito/ saio correndo no grito/ abro a porta e a janela/ Deixo entrar o destemor/ E quando julgam calar-me/ sob ameaça gelada/ começo a voar na casa/ Não sou dada/ à vassalagem/ nem ao temor nem ao medo/ Sou aquela/ que escrevendo/ se liberta nas palavras/ Dizendo não ao degredo”. Maria Teresa Horta, Malfeitores.
mcosta.alves@gmail.com

 

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