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Cata-Ventos: Dobrar a língua

Costa Alves - 14/12/2023 - 9:47

Confesso que em certas situações custa-me dobrar a língua. Como não alinho na bancada do “politicamente correto”, não digo “Boa noite a todos e a todas”. Pois não é verdade que saúdo quem está com os saborosos e bem portugueses “Bom dia!”, “Boa tarde!” ou “Boa noite”?
O adagiário garante: “A língua não tem osso, mas quebra ossos.” Na verdade, ao contrário do que dizia no início, às vezes gosto de dobrar a língua. E até de desdobrá-la e ondulá-la com sensibilidade e respeito por ela, fazer os possíveis por não criar uma monotonia redundante e ensurdecedora. Afinal, é a língua (sem osso) que identifica o idioma para que tentemos comunicar como gosta. Inferimos do ditado que há quem afie a língua e a dirija com ímpetos de malevolência. A língua afiada não dói, mas faz doer. Se ficar queimada, inverte-se o sentido da dor e dificilmente voltará a erguer-se. Estamos fartos de o saber e não é só da História o iluminar; tantos séculos de Literatura estão aí para nos lembrar o que a azáfama do dia a dia torna insensível. 
Mas, atenção: “Antes escorregar do pé que da língua”. Não é que a nossa civilização tenha aprendido muito. Na verdade, farta-se de escorregar do pé e muitas vezes até tiros lhe dá. Tiros, vejam lá! Podiam dá-los na língua, mas não; gostam de os dar no pé, vá-se lá saber porquê. Que somos belicistas, há muito que o sabemos e não é de agora o desespero impotente perante guerras da família do arrasar. No entanto, as que não têm potências e a superpotência interessadas na refrega, não dispõem de voto mediático na matéria. Podia lembrar várias, mas não me dispenso de mencionar a luta pela autodeterminação do Saará Ocidental, aqui tão perto, contemporânea da de Timor, e que ainda espera o desenlace que os Timorenses acabaram por conseguir com sacrifícios que bem conheço.
Além de escorregarmos do pé, todos, vulgares cidadãos e até os eleitos em nosso (distantíssimo) nome, escorregamos da língua. Até os eleitos? Sobretudo e deixo implícito “todos e todas”, pois não posso andar sempre com a língua a dobrar os sinos por causa do que o histórico machismo fez ao feminino. 
Já agora, não esqueçamos que “quem mal fala, pior ouve” e “quem mal fala, sua língua suja”. Há tempos e tempos e seus julgamentos: “Cuidado que a língua te não corte a cabeça.” Também podia virar o aviso ao contrário; ou seja: Cuidado que a cabeça não te corte a língua. As ditaduras aplaudem as duas formas e aplicam-nas de variadas maneiras. Nunca esqueçamos o que nos fez aquela que atravessámos. Nas democracias representativas há modos mais sofisticados e, claro, muito menos violentos. Mas, os exemplos explodem e implodem e cá vamos, “todos e todas”, a escorregar pelas ladeiras da língua tornando banais as fanfarras do ódio e do populismo, sem tento no siso, no concreto da transparência e da integridade do bem comum. 
Em conclusão, as saudações “Bom dia! “Boa tarde!” ou “Boa noite!” não excluem ninguém. Se fosse o caso, então aprontaria um “Bom dia!” - menos para aquele senhor que está ali a ver se chove em Alguidares de Baixo e para aquela senhora que parece querer furar o teto com a peruca de uma girafa. Só assim conseguiria resolver a redundante redundância deste “a todos e a todas”. E os públicos encontros bem precisados estão de não serem assim tão rotineiramente repetitivos, com as suas palavras de leva-as o vento das pré-campanhas eleitorais ensurdecedoras de todos os dias, palavras de guerras por dá-cá-aquela-palha, palavras de guerras de areia para os nossos olhos.

mcosta.alves@gmail.com

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