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Cata-Ventos: Falar por falar

Mário Silva Freire - 14/07/2022 - 9:48

Enfim, falemos por falar. Do tempo, que tem costas para todos os lados, das estações que já não são nem serão como eram e da atmosfera que cá vai trabalhando a seu modo e reagindo aos venenos que pusemos a circular, como se fosse propriedade nossa. Falemos por falar da União Europeia que introduziu o gás natural no saco das energias renováveis; e a própria energia nuclear, passando por cima de acidentes catastróficos e de resíduos radioativos para milhares de anos. Mas não falemos, em modo direto, da política que maltrata a ciência trocando as mãos (e a cabeça) pelos pés.
Falemos um falar sem ajuizar. De (como dizer?) desbaralhar e tentar dar. Um falar estremunhado de um hoje atarantado, confuso e estranho, esperando que um outro muito diferente invada o amanhã.
Falar por falar, ora aí está, foi assim que ouvi o ministro das Infraestruturas e poucos folhetins assentaram tão bem nos alinhamentos dos canais de televisão como pausa nos monólogos da guerra. De vez em quando acontecem trapalhadas assim e só os vãos do esquecimento as irão guardar.
Já agora, como quereria a Diretora-Geral da Saúde que reagíssemos quando nos instou a que não adoecêssemos no verão e que nem nos passasse pela cabeça fazer piqueniques com bacalhau à Braz? E nem quero lembrar-me das quase quinquagenárias encenações de um aeroporto para Lisboa a quererem subir outra vez ao palco. Muito menos trazer para aqui a tarefeirização do Serviço Nacional de Saúde.
Enfim, como não somos de ferro e para não entristecermos de todo, temos que distrair-nos ingerindo sumos de indiferença para não nos desgostarmos demasiado desta vida de pasmar. Ouço o Mário Viegas a dizer a “Cantiga dos Ais”, do Armindo Mendes de Carvalho, e nem calculam como fico consolado com os “ais de todos os dias/ os ais de todas as noites”; “os ais que vêm da alma”. É que os ais são uma excelente ferramenta psiquiátrica; trazem equilíbrio. Equilíbrio do desequilíbrio? Sim, mas que havemos de fazer?
Bem basta o que basta e já sinto esta conversa a descambar para um idioma atamancado com desencanto a transbordar. Pôr as palavras a tentarem fazer o pino pode dar mau resultado. Muitas não têm ginástica e estendem-se ao comprido no trampolim. O leitor já deve ter percebido que este Cata-Ventos de hoje está a precisar de muitos consertos. Isto de andar a cacarejar ais por tudo e por nada, tinha que trazer avarias.
Andámos lá pelos anos 1960 e 70 a julgar que mudávamos o mundo, em fundo e largo, e fizemos umas coisas, até uma revolução, também era o que faltava se não a fizéssemos, mas continuamos muito doentes da vida. Já nem puxo a Troika, mas, com a pandemia foi o diabo e, ainda com esse diabo às costas, embora muito calejadas, vem o diabo da guerra e das geopolíticas com os mais diabos que as carregam. É uma fase tramada da translação deste mundo, embora não possa jurar que tenham existido muitas gerações a escaparem-se das suas rodas dentadas.
A gente bem queria ajudar a melhorar esta vida tão desigual e injusta, tornando-a mais próxima da natureza e da humana natureza, mas qual quê. Como ficamos a léguas, não aguentamos e, está visto, avariamos. Ora, quando a cantiga dos ais vai por água abaixo, já não há escapatória senão adoecer e, então, temos à perna os ralhos da Diretora-Geral da Saúde. E até teremos de nos ajoelhar com atos de submissa contrição, seguindo os passos do tal ministro das Infraestruturas. Ai Giordano Bruno, antes solidão que tal sorte! 
O leitor que me perdoe, mas há dias assim. Dias em que nem os ais nos fazem boa companhia.

mcosta.alves@gmail.com

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