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Cata-Ventos: Grande gabador, pequeno fazedor

Costa Alves - 16/12/2021 - 9:17

Quando alguém te lambe as botas, coloca-lhe o pé em cima antes que comece a morder-te”. Este conselho de Paul Valéry é tão velho como o mundo. Como seria de esperar, o adagiário popular contém sentenças lapidares sobre o assunto. Exemplo: “mais fere a língua do adulador que a espada do perseguidor”. O mesmo que, avisadamente, o Pe António Vieira regista: “Mais afronta a mesura de um adulador, que uma bofetada de um inimigo.”
Adulador? “Do adulador, quanto mais longe melhor”, aconselha um ditado popular. No entanto, há outro que não é tão perentório e até contém uma premissa atenuante: “Adular não é meio de vida, mas ajuda a viver.” Oh se ajuda! Em princípio, o “grande gabador, [é] pequeno fazedor”. Temos conhecimento que baste de quem, nada mais fazendo, tenta buscar brilho no brilho do lisonjeado. Adulando, sentimo-nos como se estivéssemos a trepar para o nível do adulado. Sendo um “pequeno fazedor”, é o que lhe basta. No mínimo, “ajuda a viver”; ajuda a preencher carências por vias travessas.
Normalmente, “quem honras faz, cortesias merece”; portanto, cortesias devem gerar cortesias. Como quem diz, favores com favores se pagam; fazem-se favores para receber de volta. Isto é, abre-se uma porta aqui para se escancarar a de outro lado. É um costume socialmente abençoado. O planeta tem girado assim e, quanto mais socialmente em cima, mais o exemplo é multiplicado. E, do politicamente em cima, nem é preciso falar.
Lisonjas? “Lisonjas ouvir, orelhas abrir.” Ou, então, prevenidamente, defensivamente, como “fala de lisonjeiro, é vã e sem proveito”, não há que hesitar: “a lisonjeiro fazer mau rosto”. Na verdade, “a lisonja é uma moeda falsa que só tem curso pela nossa vaidade”. Mais sentenças da sabedoria popular. Assunto arrumado ou, como vão dizendo agora, ponto final parágrafo.
Elogio? Pode ter funções de inocente e genuína concordância ou agradecimento. Tal como a análise crítica. O pior é, como escreve Molière, “as pessoas pode[re]m ser induzidas a engolir qualquer coisa, desde que suficientemente temperada com elogios.” A vida tem-nos feito montes de demonstrações.
Bajular? Bom, a este nível, a conversa da adulação anda de rastos. Perde aquele mínimo de dignidade que enforma o socialmente correto. Vejam lá, o nosso bajular veio do latim “bajulare” que significava “carregar às costas”. Também não precisa de mais considerações.
Louvaminhar? Lá vem a explicação: louvar excessiva e afetadamente. Adulação, sempre adulação. Denis Fronvizin, dramaturgo russo, rematava assim a sua reprovação: “O adulador é um ser que não tem estima pelos outros nem por si mesmo”.
E sabujar? Dizem os dicionários que é o mesmo que adular, mas aqui encontramos algumas destrinças de teor classista. Em qualquer corte, de antanho ou de agora, mesmo que republicana, se evitaria designar assim o que pode ser dito e praticado dentro de palácio e o que se diz e pratica em casebres ou em andares em série.
E não me esqueço de que há engraxar e dar manteiga. E até apaparicar vem a calhar, quando for caso de incensar, gabar, fazer um panegírico. Noutro registo meio jocoso meio reprovador, há fazer salamaleques. E que dizer de lambe-botas - talvez o mais servilmente bajulador dos instrumentos de adulação?
Em todas estas formulações há, claro está, abundância de segundas intenções. Enfim, quem não caiu em tentação? A carne é fraca e a mente é, porventura, ainda mais. A organização das sociedades sempre promoveu e aproveitou as alavancas da adulação.
mcosta.alves@gmail.com

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