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Cata-Ventos: Guardar segredo

Costa Alves - 07/04/2022 - 9:31

Guardas-me um segredo, amigo? Melhor o guardas se te o não digo.” Esta constatação, registada por algumas compilações do adagiário popular, não está muito enraizada nas selvas urbanas de hoje onde não se dá muita importância ao que se diz a alguém e não deve ser contado a terceiro.
Ora veja. Há duas semanas, tomámos conhecimento da composição do Governo antes do Presidente da República e uma faísca fez estremecer a sua relação com o Primeiro-Ministro. O Presidente ficou sem fala - reação que se julgaria impensável. Por seu lado, o Primeiro-Ministro, fez figura de corpo inocente banalizando o que, para todos os efeitos, nele se propiciara: o não cumprimento de um ritual que pode ser considerado como mais do que uma deselegância. Enfim, todos os conflitos sejam como este, mas o episódio confirma uma forma de estar que continua a azedar o que respiramos.
Obsessivamente enfronhados no acompanhamento da invasão da Ucrânia, mesmo assim, os canais de televisão lá arranjaram um buraquinho para extorquirem e instilarem algum veneno no que se passou. O episódio era propício e nada como espremê-lo, como costumam, até o esgotarem com incansáveis repetições.
Na verdade, não guardar segredo tem barbas muito crescidas e as televisões sabem. Engloba uma longa lista de prevaricadores, estando os mais numerosos, persistentes, ostensivos e contumazes localizados nos becos largos da Justiça. No setor da Justiça? – perguntará, sempre pasmado e impotente, o distraído ingénuo que temos dentro de nós.
Quem não sabe o que a sabedoria popular poetiza há muito com esta tão bela expressão? “Contaste um segredo ao rio/ O rio o levou ao mar/ Não tarda que a terra o saiba/ Da nuvem que anda no ar.” Circuito completo. Como o do ciclo da água que não se realizou tantas vezes neste inverno como foi normal e necessário.
A verdade verdadinha é que “o segredo melhor guardado é o que a ninguém é revelado.” Branco é, galinha o põe? Claro, mas este saber secular repete um aviso que todos conhecemos e não aplicamos. É que são muito intrincados e quantas vezes tortuosos os caminhos que o segredo de justiça tem de palmilhar. Por exemplo, a Lei permite a aplicação do segredo de justiça quando entende que a publicidade prejudica os direitos dos sujeitos ou participantes processuais. Mas não é aplicado em casos escolhidos a dedo. E os materiais em segredo são despejados na redação de um jornal, quase sempre o mesmo, como se fosse oficioso, e daí transbordam para o espaço sideral. Enfim, mais um ciclo comummente aceite, normalizado, com a Justiça a tapar os ouvidos quando alguém se indigna. 
A sociedade mudou e em certos aspetos inverteram-se os critérios. Pensava-se, por exemplo, que “a quem disseste o teu segredo, fizeste senhor de ti.” Ou: “ao amigo o segredo diz, ter-te-á preso pelo nariz.” Ainda: “quem não guarda segredo, não ganha para medo.” Ou, ainda mais gravemente: “diz ao amigo segredo, pôr-te-á os pés no pescoço.” Será? Não será? Pelos vistos, entendem que, colocando nas nossas mãos os estratagemas que lhes são convenientes, não ficarão presos pelo nariz nem ganharão para o medo e, muito menos, ficarão com os pés no pescoço. Outro ditado popular enuncia a questão sem papas na língua: “três inimigos tem o segredo: Baco, Vénus e interesse; o primeiro descobre, o segundo vende, o terceiro arrasta.” Os dois primeiros continuam a esvoaçar por aí, mas o terceiro inimigo, o “interesse”, ganhou escala. “Arrasta”. E “arrastar” talvez seja a alma do negócio.
mcosta.alves@gmail.com

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