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Cata-Ventos: Uma sorte macaca

Costa Alves - 03/12/2020 - 9:27

Foi uma sorte macaca esta que nos calhou em 2020. Era para entrar em vigor o acordo de Paris sobre as alterações climáticas e a pandemia veio mesmo a calhar a quem manda no mundo; dispensaram-se de qualquer esforço. Se todos se tivessem empenhado (e já sabíamos que vários países não o fariam) embora muito atrasados, teríamos começado a contrariar o que andamos a estragar.
Não sei o que me deu para aparecer com a sorte macaca para começo desta conversa. Terei confundido os galhos e saído do carril? Estou sempre a faltar ao respeito a quem quer “cada macaco no seu galho”. Mesmo não infetado pelo Corona (assim espero estar e continuar), terei avariado por outros motivos; se calhar, será do ar fétido deste viver que o vírus nos trouxe. Já lá vão nove meses e, por dentro do medo, nunca se sabe o que o medo mais fará. “A quem mal vive, o medo o segue”. Enfim, a gente desata a colecionar macaquinhos no sótão e não sabe se consegue ficar imunizado contra o medo. Quanto a imunizados pela vacina, isso ainda não passou do adro, mas há de chegar, há de chegar.
Bem sei que “a razão espanta o medo”, assim nos fala a sabedoria de quem atravessou muitos tempos revoltos antes de nós. Essa sabedoria também garante que “o medo é mau companheiro” e que “maior é o perigo onde maior é o medo”. Mas, convém ter presente que a ignorância é o melhor berço do medo e que “não há asas mais leves que as asas do medo”.
Com o medo vem a fadiga. A fadiga atrai fragilidades, fantasmas, mais medo e, claro, mais fadiga. Fadiga de não saber, de não fazer, de não poder. E esquecemos o conselho de outros saberes: “imita a formiga, se queres viver sem fadiga” ou o “peito forte zomba da má sorte”. Na verdade, não temos peito forte nem idealismo para sustentar o nosso andar e o mudar. E tudo melhorava se conseguíssemos.
“A sorte é como o raio; nunca sabe onde vai cair”. Muitas vezes, cai em quem, vendo, não quer ver ou fazer o que deve ser feito perante o que vê. Podia ser pior? Pode sempre ser pior. É só imaginar o que aconteceu, há 102 anos: uma pandemia com uma grande guerra ainda por cima. Mas, as comparações entre piores não curam nenhuma ferida e não são para aqui chamadas.
Num aspeto, valha-nos isso, não temos de que nos queixar. O Trump era para ganhar as eleições com uma perna às costas e o que não fez contra a Covid derrotou-o. A sorte macaca tem destas coisas. Um ladozinho positivo. Pois é, “a sorte varia, hoje a favor, amanhã contraria”.
Não digam é que “cada um tem a sorte que merece”. A esmagadora maioria das pessoas não tem a sorte que merece e a esmagadora maioria das pessoas que têm sorte não a merecem. Enfim, coisas deste mundo tão desgraçadamente desigual. Coisas da sorte macaca.
Podia ter ido pentear macacos com outro assunto mandando à fava ou às urtigas o que nos apoquenta. Podia deliciar-me voltando a ver crianças a jogar à macaca. Seria uma sorte (essa, não macaca) ver as crianças de hoje a fazê-lo com toda a sua espontânea inocência. Não consigo saber porque chamamos assim ao tal jogo da nossa infância. Muito poucos a designavam por pé-coxinho, mas era da regra e até ao pé-coxinho chegávamos onde queríamos. 
Hoje, os retângulos da macaca já não cabem nas ruas, refugiaram-se em casa e apagaram-nos. Dizem que as crianças romanas faziam aqueles desenhos no chão e que a brincadeira tinha desígnios simbólicos que não chegaram até nós. Não há vacinas contra o que vamos perdendo, mas há vacinas para podermos andar de outro modo. Viver está muito difícil.
mcosta.alves@gmail.com

 

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