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Cata-Ventos: As boas intenções

Costa Alves - 30/12/2021 - 9:19

De boas intenções está o inferno cheio”. Todos o sabemos e passamos a vida a repeti-lo; como se as boas intenções fossem assunto comum, de trazer por casa, coisa vulgar, desprestigiada. Embora não saibamos como é o inferno referido pelo ditado popular, conhecemos os infernos deste mundo; uns por dentro e outros de longe. Infernos de diversas extensões e profundidades. E é nesse poço que lançamos a maior parte das boas intenções.
Comecemos pela intenção, só intenção; nem boa nem má. Pode ser intento, propósito, projeto, fito, desejo, disposição, intuito, desígnio, esperar que aconteça. Resulta da vontade, da convicção, da fé. Embora, muitas vezes, fique dependurada no ar de um vago tentar.
Das más intenções falamos pouco. Quando muito, enfrentamos um qualquer mal-intencionado safanão da vida e passamos rapidamente à fase de bonança, depois da tempestade. As más intenções não têm o mesmo peso na balança das intenções. Enfrentamo-las tecendo atenuantes vulgarizadas como involuntário, sem intenção, sem querer, imprevistamente, impensadamente. Quanto às boas intenções, aí, sim, está o busílis. Escreveu Oscar Wilde: “As boas intenções têm sido a ruína do mundo”.
Há boas intenções que não valem um caracol. Digo isto e fico arrependido do que digo do caracol. Aquela lenta lentidão de quem aprecia os raios da primavera do sol, aquela inteireza solitária que apenas convive com o respeito e a beleza que lhe achamos, ensimesmado, com o seu vagar silencioso e corninhos ao sol sem mais que fazer.
Repito. Há boas intenções que não valem um tostão; muito menos um tostão furado. Nem um chavo. Nem um vintém que é quase nada somado a quase nada. Menos que um pataco. Já que me lembrei do tostão, não posso deixar passar a ocasião para relembrar este atualíssimo ditado popular: “Quem rouba um tostão é ladrão; quem rouba um milhão é barão”. Não há sistema de Justiça que queira, realmente, ver atenuada, para não dizer equilibrada ou invertida, esta equação que caricatura a desigualdade. Já Garret ironizava: “Foge cão, que te fazem barão! Para onde, se me fazem visconde?” E fizeram mesmo tão ao jeito da multiplicação das baixas nobrezas no mercado nobiliárquico oitocentista. Não deixo o assunto sem chamar a atenção para as baronias que condecoram algumas nobrezas partidárias dos tempos de hoje.
Apesar disso, há boas intenções que valem muitíssimo mais que o tal tostão furado nunca visto pelas gerações mais novas. Na verdade, sem intenção e, sobretudo, sem boa intenção não há boa ação nem resultados da boa ação. Portanto, entre as boas ações e os desejos e as promessas que as boas intenções propalam, não há que escolher. É que todos sabemos de experiência observada e vivida os estragos que as boas intenções podem fazer. E quantas vezes as boas intenções batem nos muros por serem impotentes ante os factos da realidade. E quantas vezes são simples devaneio, enfeite, cenografia ou forma velada de esconder segundas intenções e, mesmo, camuflagem de más intenções. Quantas vezes ficamos presos nas malhas das boas intenções que não fazem necessariamente obra de arte.
Abrimos um Ano Novo sempre com boas intenções e espírito aberto à realização de boas ações. Mas depressa passam. Como diz Carlos Drummond de Andrade no seu poema “Receita de Ano Novo”, “para você ganhar belíssimo Ano Novo/ (…) não precisa de fazer lista de boas intenções/ para arquivá-las na gaveta”. Que seja mesmo um belíssimo Ano Novo! Sem boas intenções arquivadas na gaveta.

mcosta.alves@gmail.com

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