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Cata-Ventos: Caprichos do verbo matar

Costa Alves - 15/06/2022 - 10:14

Há verbos que matam e um dos mais mortíferos é justamente o verbo matar. Há muitas maneiras de o aplicar e não lhes ligamos. Por exemplo, matar pulgas. É um castigo quase tão grande como caçar gambozinos por quem não sabe o que afinal (não) são. Há anos que não sei se ainda existem pulgas e presumo que estarão a desaparecer mais rapidamente do que as abelhas. O problema das abelhas é que, sem as que vão desaparecendo, vai diminuindo a polinização e, portanto, haverá menos alimentos. Por mais uma combinação de fatores mortíferos, também com origem nas atividades humanas, é mais um grande problema para a vida no planeta.
Continuamos a elogiar quem “mata” dois coelhos com uma só cajadada. Na verdade, somos capazes de abater mais do que dois de uma só assentada. Que o digam, além das abelhas, as ondas de calor, a albufeira de Santa Águeda, os refúgios mediterrânicos, várias escolas americanas. Para não falar dos golpes de estado das guerras nem do maléfico governar do deus dinheiro.
Na minha infância havia a quinta do “Mata-Galinhas”. Começava ali mesmo onde está a igreja de S. Tiago. Um senhor que os nossos medos associavam ao cão que, mal a bola galgava o muro, disparava os seus ódios raivosos sobre qual de nós se atrevia a ir recolhê-la. Já estão a ver o que acontecia a qualquer galinha de criação que para lá se escapasse dos pequenos quintais das redondezas.
Nesse tempo, havia “mata” para muitas coisas. As raparigas jogavam ao “mata” e nunca percebi por que lhe chamavam assim. Atiravam um ringue e, vejam lá, “matavam”. Havia o “atirar a matar” dos filmes de caubóis e havia venenos em profusão, como mata-ratos e mata-moscas, para além dos venenos paralisantes que a ditadura espalhava nas nossas vidas. E até começaram a espalhar matas de eucaliptos que “matam” florestas com a mesma avidez com que os humanos encaliptos secam tudo à sua volta. Há dois anos conseguimos ver um polícia a “atirar a matar” com o cano de um joelho cravado no pescoço de George Floyd. Em todas as modalidades o verbo pode adaptar-se à banalização do mal.
Sobre vestimentas e maquilhagens basta dizer: “Ficam-te a matar!” É um elogio máximo e gostamos muito de máximos, únicos, melhores, recordes. Quanto a saudades, também não há que hesitar; se não as “matarmos”, continuarão um tormento.
E no futebol? Dizem os comentadores que o instinto “matador” do ponta-de-lança “matou” o jogo. E, quando se enfrentam dois adversários para decidirem qual passará à fase seguinte de uma competição, como não têm português à mão de semear, chamam-lhe “play off” ou, se forem quatro, “final four”. Perante uma simples eliminatória, ou bota-fora, ou final a quatro, ou meias-finais, preferem enrolar-se no ignorante ou preguiçoso vício de chamar o inglês em seu socorro. A desgraça ainda piora quando recorrem ao português brasileiro do Scolari. Borram ainda mais a pintura demonstrando, com o “mata-mata”, uma incontida vocação de concorrer com prazeres de exterminar.
De resto, “matar” à fome, ao frio e ao calor é banal; oculta-se com facilidade. Não há mediatismo que se aproxime. E, a exemplo das saudades, também “matamos” a fome e a sede.
E quando me convidam para “matar o tempo”? “Matar” o tempo?! Mas ele é que prega a partida irrecusável de nos apagar destinando-nos ao esquecimento! Podemos desperdiçá-lo com preguiças de entreter passatempos, mas, convenhamos, não temos tempo para mais tempo do que aquele que cabe nas nossas vidas.
Enfim, temos demasiado “matar” no idioma deste nosso viver.
mcosta.alves@gmail.com

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