Este site utiliza cookies. Ao continuar a navegar no nosso website está a consentir a utilização de cookies. Saiba mais

Cata-ventos: Papéis de Pandora: a esperança ficou presa

Costa Alves - 21/10/2021 - 9:49

O leitor não se lembrará, mas, em 14 de abril de 2016, escrevia aqui a propósito dos chamados “Papéis do Panamá”: “O primeiro-ministro da Islândia foi apanhado com o microfone na botija e, claro, a pressão popular obrigou a que saísse.” E mais nada aconteceu digno de nota aos poderosos apontados pelos microfones. Como sabem, o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação tinha garantido que continuaria a alargar e aprofundar o conhecimento dos papéis alojados nos cofres secretos do Panamá. Debalde; de um dia para o outro, parou. Enfim, coisas e loisas deste opaco mundo de ferozes desigualdades.
Entretanto, continuaram a soltar-se várias fugas, que intitularam de “leaks”. Depois de alguns estardalhaços, passaram por demoras muito demoradas e deixaram de estar nas bocas estridentes dos telejornais. Angola, futebol, etc, etc e até parece que terão ocorrido noutro planeta e que apenas servimos para espectadores.
Eis senão quando, pimba! Mais um. Agora com um nome de batismo muito inspirador: Pandora. O assunto é o mesmo, claro. Estamos sempre pousados no mesmo: dinheiro, dinheirama, dinheirinho, cacau, pilim, massa, carcanhol, vil metal, bago, caroço, cheta, guita, grana, papel.
Papel, muito papel escondido nos ditos “offshore”, isto é, fora da praia, longe da costa, sobretudo longe da vista, mas perto do coração que pulsa pela magia da multiplicação da adorada dinheirama. Estes obscuros e anónimos cofres foram uma engenhosa invenção que mistura o ilegal com o legal para que não se distinga o teoricamente limpo do praticamente sujo e, sobretudo, do criminoso. É uma cobertura para o que passa por baixo da mesa e para o que foge às obrigações perante o retoricamente cognomeado “país amado”. Políticos, banqueiros, empresários, advogados, reis, chefes de Estado e ex, primeiros-ministros e ex, ministros e ex, gestores, modelos, amigas de presidentes, cantores, jogadores e treinadores milionários. A lista é muito extensa. Tudo gente “fina” e cortesã; gente da alta na hierarquia do deus dinheiro.
Segundo a mitologia grega, os deuses enfiaram na Caixa de Pandora todas as desgraças do mundo, entre as quais a guerra, a discórdia, a inveja, o ódio, a prepotência, o abuso, todas as doenças de sociedade. Apenas um bem, um só bem, nela se encontrava dissimulado: a esperança. Pandora era a primeira mulher a ser enviada à Terra e Zeus entregou-lhe a Caixa com a recomendação de que não poderia abri-la. Mas, não conseguindo resistir à curiosidade, destapou-a e, quando quis corrigir, apenas chegou a tempo de manter presa a esperança.
Como sabemos, mil e uma malfeitorias foram libertadas para o mundo, entre elas as fugas ao fisco e todos os outros maléficos negócios escuros que escondem milhões de caixas e caixinhas que saltaram da Caixa de Pandora e se alojaram fora das praias do nosso conhecimento. Só a esperança foi banida. Os cofres escondidos podem continuar escondidos. Enfim, pode ser que vivamos em estados de direito (quem vive), mas não vivemos em estados de justiça. E cá vamos sobresubvivendo.
Resta lembrar a sátira de Francisco de Quevedo ao “poderoso caballero es dom Dinero” que também conhecemos musicada e cantada por Paco Ibañez: “Madre, yo al oro me humillo;/ él es mi amante y mi amado,/ pues de puro enamorado,/ de continuo anda amarillo.” Não é novidade. Lá do fundo dos tempos, já o Eclesiastes avisava: “O mero amante da prata não se fartará de prata, nem o amante da opulência, da renda.”

mcosta.alves@gmail.com

COMENTÁRIOS