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Crónica: Debita Nostra CCXXX

Luís Costa - 07/03/2024 - 9:41

Isto não é dizer que não há um problema com a imigração. Claro que há. (...) Mas também há um problema de perceção desproporcionado em relação à realidade. Mesmo na imigração ilegal. Disse Gaspar: ‘O problema da imigração é ampliado para lá de qualquer proporção: na UE havia, em 2023, 200 mil imigrantes ilegais. Nos EUA, na fronteira do México, há 200 mil por mês. E os EUA têm uma população menor do que a da UE’.” (Bárbara Reis, Público, 03-02-24).
Não se pode dizer que a atual ‘revolta’ dos agricultores europeus seja algo de novo e que, em geral, não (res)suscite velhas interrogações. O ideal de um ‘livre’ comércio que não obedeça a outro critério que não o do preço, há muito que anda por aí. A diferença está em que se invoca agora a inexistência idênticos padrões (fitossanitários) na produção, enquanto sempre se negligenciou a respetiva condição do fator trabalho. Ou melhor, se foi indiferente aos seus mais básicos direitos e à existência de democracias que os pudessem sustentar.
E se isso se pode considerar o “teste do algodão” da nossa real escala de valores e da maneira como os difundimos, não deixa de ser testemunho do pouco que aprendemos, ao exportá-lo, com o maior drama social e político que alguma vez por aqui vivemos (Questão Social, séc. XIX). E de nos interrogar sobre se a dita vantagem dos produtos mais baratos não terá sido apenas o pretexto para (re)nivelar por baixo, ameaçando-nos nas garantias da nossa ordem democrática, tendo embora começado pelo ‘outro’, bem longe de nós.
Aquele ‘outro’ que, desiludido de qualquer réstia de democracia, neste momento nos bate à porta, parecendo reforçar, presencialmente, a referida ameaça, ainda quando se ocupa dos trabalhos que não queremos ou podemos fazer. E questionando-nos sobre quanto nesta teimosa “perceção” não será “desproporcionado em relação à realidade” e ofensivo da democracia, enquanto protótipo da melhor racionalidade política.
É que, ao que consta, a simples presença (existência) de um ‘outro’ (diferente) sempre pôde, em termos instintivos, insinuar-se-nos como um perigo. Poder não se ser (plenamente) como nós somos, relativiza aquilo que somos e dispensa-nos objetivamente de o sermos, como tal (identidade existencial). Não acontecerá por acaso o bem conhecido (pre)conceito que faz com que um imediato suspeito de qualquer percalço que nos aconteça em casa seja, por regra, a(o) empregada(o). Tanto mais cedo quanto mais ‘diferente’ for. 
Cumprindo, desde logo, uma comum associação: é na exata medida em que o ‘diferente’ nos ameaça que tendemos a atribuir-lhe tudo quanto nos ameaça, com os consequentes erros de perceção. 
E se, nos testemunhos do séc. XIX, o impressionante é a eficácia com que então se entendia culpar a vítima, vejam só o alcance de conseguirmos que sejam ‘diferentes’ vítimas a culparem-se entre si.

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