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Crónica: Debita Nostra CCXXXI

Luís Costa - 21/03/2024 - 9:32

"As pessoas em situação de sem-abrigo, os reclusos nas prisões, os nacionais ou migrantes que vivem em alojamentos temporários, todos estes casos não se encontram refletidos nas estatísticas oficiais. (...). Tanto os pedidos de apoio à Cáritas como a mera observação das ruas das grandes cidades atestam esta dinâmica. Os pedidos de apoio à Cáritas por parte de imigrantes também têm crescido acentuadamente nos últimos anos.” (“Pobreza e exclusão social em Portugal: uma visão da Cáritas”, Cáritas Portuguesa, fevereiro de 2024).
Falemos então de imigrantes. Assumindo uma atitude responsável em relação à sua receção e integração, mas reconhecendo também a instintiva sensação de ameaça que o ‘diferente’ sempre nos provoca, prestando-se a empoláveis e exploráveis perceções de insegurança (DEBITA NOSTRA CCXXX).
E se o procedimento democrático, fruto de uma apurada racionalização política, nos impele à superação das nossas mais instintivas reações, constitui-se também como um instante desafio à prossecução dos nossos mais conseguidos padrões civilizacionais.
Ora, a tradição judaico-cristã, no seu desenvolvimento, é riquíssima no que se refere à nossa relação com a pessoa do ‘outro’. Sem que, na respetiva literatura (Bíblia), perpasse uma graduação desse ‘diferente’ em função do seu rendimento ou da sua maior ou menor parecença connosco.
A figura do “estrangeiro” surge-nos tão vulnerável como aquela com que nos deparamos hoje, num olhar sobre as “ruas das grandes cidades”, ombreando com os pobres, órfãos e viúvas nos “direitos” que lhes são “devidos” (Ex. 22, 21; Ex. 23, 12; Lv. 19, 9-10; Lv. 25, 6; Lv. 25, 35; Dt. 24, 19-22; Dt. 16, 12-13; Rut. 2, 18). E a sua nobreza de caráter será mesmo exaltada num texto dedicado, como é o livro de Rute.
Com uma recorrente justificação: “Não maltratarás o estrangeiro e não o oprimirás, porque também foste estrangeiro no Egito” (Ex. 22, 21). Não pelo ‘empenho’ posto na construção das pirâmides ou, inverosimilmente, pela sustentação de qualquer segurança social ou superação de défice demográfico.
Mas porque se foi “escravo na terra do Egito” (Dt. 24, 22), ou seja, pela prova do “pão que o diabo amassou”, sabendo-se como qualquer ‘pessoa’ deixava de o ser fora do seu “povo” (ainda no Direito Romano o escravo viria a ser tomado como coisa (“res”)).
Muito longe, portanto, daquela pulsão instintiva que imediatamente nos propõe (res)sentir o ‘outro’ como fator de insegurança; mas no entendimento de que, por essa mesma razão é, ele próprio, o objeto da maior das inseguranças.
Razão que, mais empaticamente, nos poderia sugerir um apropriado lema: não desprezarás o estrangeiro porque também tu foste estrangeiro, na Alemanha, no Luxemburgo, em França, etc.. Assim o ‘outro’ não fosse, por definição, um ameaçador ‘diferente’, nem se nos tivesse esvaído qualquer sentido de coletividade.
Sentido que em Israel, porém, também lhe não facilitaria o relacionamento com outros “povos”. (CONTINUA).

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