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Crónica: Debita Nostra CCXXXII

Luís Costa - 04/04/2024 - 9:24

"Como vamos garantir que todos os que nos procuram serão tratados com a dignidade e a humanidade que merecem? Como vamos fiscalizar o cumprimento das leis e evitar a ação das redes criminosas que se dedicam ao tráfico de seres humanos? Uma coisa é reconhecer a evidência e afirmar que a imigração é boa para Portugal, que não implica hoje nem problemas de segurança nem descontrolo; outra é acreditar que basta cruzar os braços para que esse efeito positivo se confirme.” (Manuel Carvalho, Público, 29-02-24).
É possível que a figura do “estrangeiro”, enquanto pessoa vulnerável que (a par do pobre, do órfão e da viúva) o Antigo Testamento pretende proteger, fosse a de um indivíduo isolado que, como Rute (Livro de Rute), um dia se acolheu à terra de Israel. Mas era nele que se refletia a memória das agruras do Egito, preservando-o da sensação de ameaça, que o ‘diferente’ instintivamente nos provoca, e de empoláveis e exploráveis perceções de insegurança (Debita Nostra CCXXX e CCXXXI).
Porém, na sua relação com outros povos, Israel sempre manteve a autoconvicção de ‘povo escolhido’ que, ainda hoje, é o sustento de qualquer nacionalismo, por contraste com bem mais saudáveis (identitárias) formas de patriotismo.
Nela se inspirou a prática da “usura”, vedada aos “irmãos”, mas permitida para com os “estrangeiros” (Dt. 23, 19-20), cuja lide, proibida na cristandade, lhe ficou reservada, ainda que, para tanto, certos cristãos não dispensassem o seu “judeu de estimação”. Ou se escudassem na chamada “exceção de santo Ambrósio” (Decreto de Graciano, 1140) que, com o mesmo fundamento, vinha tolerá-la para com os não-cristãos e os não-sujeitos à lei romana (Debita Nostra XII e XIII).
Só que o próprio cristianismo, desde os seus primeiros debates, já viera subverter tão básico critério moral, ao consagrar que “não há judeu nem grego; não há servo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo” (Gal. 3, 28), propondo-nos mais ambiciosos imperativos.
E confrontando-nos com o desafio de acautelarmos não só a pulsão instintiva que nos faz culpar o ‘diferente’, em particular quando espontaneamente lhe atribuímos tudo quanto nos afeta, como também o de ponderarmos outros fenómenos igualmente latentes. Entre eles, o da conhecida propensão das “profecias sociais” para o autocumprimento.
É que os mesmos “estrangeiros” podem por nós ser formatados na distinta prefiguração que deles fazemos. Desde logo, entre os que nos chegam de mais ‘perto’ ou com tilintante rendimento e os que aqui aportam carentes, isolados e inseguros, eventualmente marcados pelas “redes criminosas que se dedicam ao tráfico de seres humanos”. 
Cindindo-nos, assim, num diferente ‘(pres)sentimento’ da representação de ‘perigo’ ou de evasão ao cumprimento das nossas leis e, consequentemente, na predisposição para que devidamente os “tratemos com a dignidade e a humanidade que merecem”.

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