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Crónica: Debita nostra CCXXI

Luís Costa - 02/11/2023 - 9:44

O problema é que a política feita com base na exploração de emoções primárias como o ressentimento – com causas subjacentes justas ou imaginadas – desemboca quase sempre na total incapacidade de compromisso. (...) a milhas da sociedade política liberal que tenta através dos mecanismos de representação e de uma delicada arquitetura institucional, insular as decisões políticas das paixões irrefletidas inibidoras de diálogo e que visa introduzir mecanismos de deliberação e construção de consensos entre adversários políticos que, em momento algum, se olham como inimigos.” (Pedro Norton, Público, 25-09-23).

Quanto à ideia de que a vantagem ética e prática da democracia reside no “pressuposto de que ninguém tem mais do que uma noção muitíssimo parcelar da realidade” (Mendes da Silva, PÚBLICO, 14-07-23), nada se perderia, penso, em distinguir a ética da prática. Desde logo, pela dificuldade em aderir à ‘procura’ da realidade pelo preenchimento do respetivo puzzle, quando as ideologias se propõem mais facilmente fazê-lo. Atidas à sua imediata imprescindibilidade e à improbabilidade de que alguma vez as relativizemos, enquanto ‘guardiãs’ das nossas identitárias mundividências (Debita Nostra, CCXX).

Creio que por muito mais pragmáticas razões, ao ficar ‘evidente’ que as sociedades mudavam, se chegou à conclusão de que excluir outras visões “parcelares” era, simultaneamente, admitir o princípio da exclusão, a possibilidade de o experimentar, face a eventuais oscilações do poder.

O que reinvoca uma questão ética, mesmo que à revelia do cândido propósito de que todos nos concertemos para reconstituir o puzzle por que se fragmenta a realidade. Será que a desejada ‘forma’ democrática é apenas o melhor maneira de os poderes iludirem marginais tensões e “emoções primárias”, ou o processo de as erradicar pelo acesso à representação política?!

Destacando, assim, o relevo dos “mecanismos de representação” e da “arquitetura institucional que visa introduzir mecanismos de deliberação e construção de consensos”, sem eliminar outras interrogações. Será possível deles excluir quem revele quaisquer “ressentimentos” ou uma “total incapacidade de compromisso”? Como se apuram os “ressentidos” e a sua real expressão? Quem por eles decide o que são ou não ressentimentos, os que advêm de “causas subjacentes justas ou imaginadas” e mesmo como se distinguem umas das outras?!

Não estaremos correndo o mesmo sobranceiro risco de nos imaginarmos a atingir o “Fim da História e o último Homem” (Fukuyama), ignorando o “ressentimento” que as democracias e a “sociedade política liberal” têm gerado à sua volta?

Como é que esta lidou, na sua incipiente pujança, com os “ressentidos” da Revolução Industrial, a sua extensa e intensa miséria, as suas “emoções primárias” e a sua “total incapacidade de compromisso”?

Como é que vai explicar aos insurgentes de todo o mundo, “ressentidos” descrentes da sua superioridade ética, o pouco que lhe importavam, tanto quanto lhes alcança a memória, os respetivos direitos, desde que pudessem produzir mais barato?!!!

 

Luís Costa

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