Este site utiliza cookies. Ao continuar a navegar no nosso website está a consentir a utilização de cookies. Saiba mais

Crónica: Debita Nostra CLXXII

Luís Costa - 23/09/2021 - 10:02

… “a democracia e os mercados livres podem gerar resultados insatisfatórios, principalmente quando mal regulados, ou quando ninguém confia nos reguladores, ou quando as pessoas que entram na competição vêm de pontos de partida muito diferentes. Os perdedores destas competições irão sempre, mais tarde ou mais cedo, colocar em causa o valor da própria competição. (Anne Applebaum, 2020, “O crepúsculo da Democracia”, pp.64-65).
A “crise” do sistema democrático, olhada agora de uma perspetiva conservadora (Applebaum), oferece ainda outros tópicos de reflexão. 
É claro que a democracia, exatamente porque o “menos mau” de todos os sistemas, pode gerar “resultados insatisfatórios” face a problemas de regulação e de confiança ou do matricial desequilíbrio entre os seus concorrentes. Mas, para um olhar mais atento a todo o processo histórico, nada disso representa qualquer novidade. 
Relevante, para a presente crise, parece ser a tese de que tal se deve à crescente complexidade das sociedades modernas (pp. 107-108), no que isso “tem enervado aquela parte da população que prefere a unidade e a homogeneidade” (pp. 118). E de que dá, como exemplo, o atual estádio do conservadorismo europeu e norte-americano.
De facto, a questão parece não ser tanto a do método democrático, em si, quanto a das características dos seus intervenientes. Ou seja, a das alterações (ou a sua ausência) havidas nos campos da oferta e da procura de todo o “mercado eleitoral” (Shumpeter).
É que os “pontos de partida muito diferentes”, já não são só os da ‘imediata’ estratificação social (com que a democracia sempre pôde conviver). Perturbando, assim, certas ‘tranquilidades’ e invertendo supostos ‘sistemas de valores’: (“paga-se qualquer preço, perdoa-se qualquer crime, ignora-se qualquer atrocidade, se essa for a condição necessária para ter a verdadeira América, a velha América, de volta”, pp. 168).
São também, nesta “aldeia global”, os resultantes do amplificado fenómeno migratório. E os que advêm do maior ou menor apego às rotinas democráticas (incluindo os que não tiraram vantagem da recente rutura com regimes autoritários, ficando à mercê do princípio da sua “equivalência moral”, pp. 154). E os dos que, industriados nos vícios da democracia, dela tiram partido pela produção de “factos alternativos”. E ainda os daqueles que, embalados na promessa de uma mobilidade social, viram frustrados os seus miméticos investimentos e a aspiração por um outro ascendente (poder) de que apenas copiaram os piores tiques (Debita Nostra CLXIV a CLXVI).
Colocando novos desafios à elasticidade da democracia, no seu fundacional propósito de inclusão política do ‘diferente’. Mas interpelando-a também pelas formas por que nela se foi ‘construindo’ esse diferente.
A começar pelo instituído ‘culto da individualidade’ que radica na original ideia de que é das escolhas individuais (agregadas) que há de resultar um sistema social (mercado) coerente.
E que decisivamente nos veio modelando, para além das tradicionais fronteiras políticas.

COMENTÁRIOS