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Crónica: Debita Nostra CLXXIII

Luís Costa - 07/10/2021 - 9:31

Os nossos comerciantes e patrões das manufaturas queixam-se muito dos maus efeitos dos altos salários no aumento do preço e da consequente diminuição na venda dos seus produtos, quer internamente, quer no estrangeiro. Porém, nada dizem sobre os maus efeitos dos altos lucros; calam-se no que diz respeito aos perniciosos resultados dos seus ganhos; mas lastimam os dos outros.” (Tradução livre de Adam Smith, 1776, “Wealth of Nations”, pp. 164)
Dificilmente conseguiremos hoje calcular todo o impacto do que foi a ‘descoberta’ histórica da ‘individualidade’. E a assunção de que os percursos pessoais podiam ganhar um outro ‘sentido’ do que aquele que lhes advinha da ‘autoridade’ do ‘grupo social’.
Sabemos como isso foi uma progressiva ‘conquista’ da modernidade. Produzindo, embora, em termos de integração social, os perturbadores efeitos que, na sociedade industrial, Durkheim caracterizou e tipificou sob o conceito de “anomia”.
Sabemos que as sociedades tradicionais não estavam isentas das disputas de interesses, mas que apenas as subjugavam à perceção de que a ‘sobrevivência’ comum dependia de um todo (o grupo, a natureza e a divindade) perante o qual se reconheciam em dívida existencial. E que esta sobrelevava os demais ‘interesses’, a que apenas se obrigavam os ‘estranhos’ (fora da mesma jurisdição). Como sabemos que, um dia, se nos ‘propôs’ que tal ‘jurisdição’ abarcasse o conjunto da humanidade (filhos de Deus) e as dificuldades práticas supervenientes (DEBITA NOSTRA XIV). 
E que foi o “puritanismo” que veio romper com este cerco moral e com o condicionamento social dele resultante, permitindo uma mais solta iniciativa económica. 
Sem que, multiplicando o número dos ‘outros’ (indivíduos) e reduzindo o dos ‘nós’, o conjunto dos crentes (predestinados) a quem admitia uma apertada regulação, prescindisse dos correspondentes lucros.
Facultando e justificando, assim, a tradicional desenvoltura de uma externa ‘gulodice’, sem prejuízo de um próximo equilíbrio social (Max Weber).
O pano-de-fundo que permitiu ao professor de moral Adam Smith desenvolver toda uma utopia sobre o funcionamento do mercado. 
Mesmo reconhecendo que ele poderia ficar à mercê daquela espontânea avidez (Theory of Moral Sentiments, 1759) e exacerbar um doméstico conflito sobre a “distribuição” dos respetivos “ganhos”.
Estava, porém, aberta a porta à conveniente ideia de que é da agregação das escolhas individuais, magicamente postas em pé-de-igualdade, que advirá um sistema social coerente e o “bem-comum”. Tese muito mais recentemente aprimorada, na sua candura, pela ‘inovadora’ escola de Chicago (Milton Friedman). 
Esqueçam-se este congénito enviesamento e os seus efeitos sobre os processos de distribuição e produção; a precarização desta última em nome de uma postulada competição, com os vizinhos, primeiro, (Villermé, 1840), com o ‘Bangladesh’, depois; as ‘devastações’ sociais daí (de)recorrentes (Rerum Novarum) sob o pré-esforçado alibi de que não é um sistema, mas um ‘natural’ resultado de ‘escolhas’ individuais.
Restarão ainda as sequelas deste instrumental/apologético ‘mito da individualidade’!

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