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Crónica: Debita Nostra CLXXXII

Luís Costa - 21/04/2022 - 9:19

Análises precipitadas da Teoria da Seleção Natural alimentaram, durante várias décadas, uma visão predominantemente egoísta da nossa espécie. Esta visão acabou por afetar de forma profunda a nossa época, na economia, na política e na filosofia – em toda a nossa cultura. No entanto, Darwin confirma que o nosso sucesso evolutivo, enquanto espécie, depende acima de tudo, da nossa capacidade de cooperação. (J. F. Rodrigues, “A Era do nós – proposta para uma democracia do bem comum”, 2021, pp. 38).
A corrente narrativa sobre a natural predisposição dos seres humanos para o egoísmo, com inegável impacto “na economia, na política e na filosofia – em toda a nossa cultura”, tem fundamentalmente servido uma ideia e um propósito. A de que o melhor ‘ordenamento’ social é o que, por “mão invisível”, há de resultar da espontânea competição dos interesses em presença; o de que a prossecução dos interesses (poderes) assim prevalecentes, pelo seu dinamismo, se confunda com o bem-comum.
A hipótese de que tal ‘natureza’ seja, ela própria, produto de uma contínua aprendizagem nem sequer se coloca. Tanto mais quanto a memória da tardia ‘descoberta’ da ‘individualidade’ se desvaneceu. E quanto, nesta tendência para a progressiva emancipação do “nível superior de organização biológica” (Teoria da Seleção Multinível) que é o grupo social, muito do “bom selvagem” degenerou.
É pena! Porque, sob o generoso pretexto da libertação das mais rígidas imposições do grupo, também muita coisa se perdeu. Como na subordinação do apreço da comunidade ao monopólio das motivações individualistas (DEBIA NOSTRA CLXXVI). Como na subestimação de quanto da nossa capacidade produtiva é devedora de uma acumulada herança social. Como no desdém por quanto da nossa melhor produção científica e tecnológica é também resultado de uma alargada cooperação. 
E se as maleitas desta ‘desintegração social’, tipificadas sob o conceito de anomia (Durkheim), foram particularmente penosas durante a revolução industrial; e se há razões para crer que hoje não o serão menos (Lagrange, “Les Maladies du Bonheur, 2020), embora com distintas sequelas para os diferentes estratos sociais (DEBITA NOSTRA CXXXVIII e CXXXIX), convém reconhecê-las numa dupla vertente.
Por um lado, a da muito maior exposição (desproteção) que o isolamento do grupo social representa; por outro, a de um deprimente obstáculo a qualquer contributo para a consistência e dinâmica do mesmo grupo. Ambas com previsível impacto no deflagrar e atear dos totalitarismos (Hannah Arendt).
Consequentemente, esta “atomização social” terá também inevitáveis repercussões sobre quaisquer processos de mudança estrutural (que pretendam resistir a um desencantado “fim da história”), já que não se trata de um epifenómeno, mas de uma característica das sociedades “pós-industriais”. 
Sobretudo se a mudança não se pretender fadada para a coercividade, por determinismos históricos, (evitando um sério risco de refluxo), mas agregadora dos saberes, dos sentimentos e das esperanças de uma grande parte da população.

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