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Crónica: Debita Nostra CLXXXIII

Luís Costa - 05/05/2022 - 10:02

"A democracia (como ideia, inspiração, princípio, ideologia ou credo) atrai cada vez menos Estados que deixam gradualmente de invocar ou reclamar um qualquer estatuto democrático para definir a sua presença no mundo e nas relações internacionais. Esses tempos estão ultrapassados. (…) O poder, a força, a dimensão, o dinheiro e as armas adquirem muito mais importância. O mundo ocidental terá de fazer escolhas difíceis.” (António Barreto, “Civilização”, PÚBLICO, 23-04-22).
Mais preocupante que a contabilização dos Estados democráticos me parece ser a crescente desafetação dos seus nacionais à democracia enquanto “ideia, inspiração, princípio, ideologia ou credo”. O que apela a que se tente perceber se a referida ‘passagem de moda’ não corresponde antes a uma crise estrutural, pelo menos naquilo em que esta democracia pôde ser assumida como um formal fim da História.
Ou seja, àquela pesporrência com que, de satisfeitos com “os nossos botões, quisemos furtar aos vindouros o remate da civilização. Ou ainda, mesmo ‘desabotoados’, nos desinteressámos dos atuais ‘descamisados’, e da sua representação, (con)vertendo a democracia no improvável cadinho de uma petulante ausência de alternativas (DEBITA NOSTRA CLXXV).
E, simultaneamente, nos despreocupámos de uma galopante “atomização social” que, a pretexto da ressalva do valor do ‘individual’, nos mergulhou entre ‘estranhos e na incapacidade urdir o mais frágil tecido social (DEBITA NOSTRA CLXXXII). 
Não porque a democracia não tivesse sido concebida como o “mercado” (Schumpeter) onde cada procuraria quem melhor o pudesse representar. Mas porque, no afã de proteger a “oferta” pela disseminação da “procura”, descurámos a (im)possibilidade de corresponder, por medida, a tanta ‘individualidade’.
É certo que, em democracia, há “credos” em que o bem-comum não passa de um mero resultado da prossecução e satisfação dos interesses privados. Assim iludindo como na ‘ignorância’ dos diferentes poderes, e consequente neutralidade, se abre caminho a quem pode mais (o que, já num outro campo, a bem recente invasão da Ucrânia veio mais uma vez demonstrar). Mas não só.
Assim também dificultando quaisquer propósitos de mudança social, no que eles supõem de uma democrática conjugação de vontades e de uma congregadora resposta às crises estruturais. Não porque nesta mudança não caibam também as iniciativas particulares, ou o seu somatório, mas pelo que ela inevitavelmente exige de envolvimento e empenho na decisão de para onde se quer e há de poder ir. Ou ainda de um elam de encanto e emoção que, podendo não ser decisivos, nunca faltaram às mais significativas mudanças que a História pôde acolher.
E é por isso que as dinâmicas centradas nas questões identitárias, ou mesmo fraturantes, na medida em que também derivam do valor da ‘individualidade’, não visam a estrutura social, mesmo que apontem à mudança. 
Desde logo porque, independentemente do seu mérito, se focam naquilo que nos distingue e não no muito que nos pode unir.

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