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Crónica: Debita Nostra CLXXXVIII

Luís Costa - 14/07/2022 - 9:46

"Disse alguém que Vladimir Putin pode pescar com êxito nas águas turvas do desencanto europeu. Tudo se joga no combate das ideias: Moscovo tornou-se na capital, já não da utopia comunista, mas do autoritarismo conservador, do nacionalismo reacionário e do despotismo autocrático. É o modelo que nos propõe.” (Jorge Almeida Fernandes, Newsletter, Público, 09-06-22).
Pode até, para alguns, ter-se gerado no espírito da auspiciosa “paz kantiana”, em que o comércio se entendia como o melhor dos pretextos para um “ameno” (inter)câmbio e uma acrescida (con)fiança entre povos soberanos. Ou, mais prosaicamente, ser tão só um derivado da prevalecente ideia de que a descida dos preços, a expensas de uma certa globalização, é um imperativo que em nada compromete as bases do nosso viver comum (Debita Nostra CLXXXI). A Europa colocou-se numa situação de subserviência energética, ‘orientando-se’ para muitas outras dependências que se anunciam, sem que tal tivesse grandemente preocupado os paladinos das ‘independências’ nacionais.
Não será essa, porém, a sua única debilidade, como o atual processo de sanções à Rússia poderá eventualmente demonstrar. Sobretudo, pelas características dos regimes democráticos, no quanto estes permitam a Putin vir “pescar nas águas turvas do desencanto europeu”.
É que o “autoritarismo conservador”, o “nacionalismo reacionário” e o “despotismo autocrático” não precisam de se justificar perante as suas geralmente bem ‘enformadas’ hostes. Que, de resto, confundem com as que deliberadamente se lhes opõem e, por qualquer forma, deles tentam proteger-se, com tanto mais empenho quanto um dia os puderam experimentar.
Já as democracias, por terem que prestar contas, apresentarão outras ‘fragilidades’. E, ao que consta, serão muito mais atreitas a recusar, pelo menos a médio prazo, os custos sociais do “combate das ideias”. Ou, talvez, a sua usual distribuição… O que suscita toda uma outra ordem de questões.
Estará o sistema democrático apenas ‘fadado’ para sociedades mais ‘soltas’ em termos económicos? Porque não se generalizou após uma tão ‘enriquecedora’ e ‘pedagógica’ globalização? Será possível conciliar um sufrágio universal socialmente distorcido com a indeclinável defesa daquelas mesmas ideias? Será que, de facto, é por elas que nos decidimos quando hoje escolhemos os nossos representantes? Será que elas só nos mobilizam, coletivamente, quando ameaçados de as ver perecer? Não foi por elas que já travámos comuns “combates”, contra o totalitarismo, apesar da consequente ‘despesa’ social? O que mudou, entretanto?
E é aqui que se não pode esquecer a persistente mudança das “sociedades modernas” no sentido de uma progressiva “atomização social” (Debita NostraCLXXXII, CLXXXIII e CLXXXIV). Em que a propósito do valor da ‘individualidade’ se nos foi desvanecendo a consciência gregária e tolhendo a capacidade de urdir o mais precário tecido social.
E como todo esse processo se cumpriu em nome da ideologia de que é da prossecução dos interesses individuais que há de resultar o bem-comum.

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