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Digressões Interiores: A última cotovia

João Lourenço Roque - 18/02/2016 - 8:00

Na campanha de 2015/2016, o lagar dos Calvos já só funcionou durante sete dias, quando há décadas atrás o tempo de laboração se estendia por mais de um mês. De ano para ano vai aumentando o número de “desertores” que procuram novas modas e facilidades.

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Na campanha de 2015/2016, o lagar dos Calvos já só funcionou durante sete dias, quando há décadas atrás o tempo de laboração se estendia por mais de um mês. De ano para ano vai aumentando o número de “desertores” que procuram novas modas e facilidades. Lamentável me parece a atitude dos mais novos que fazem tábua rasa do passado, desleixando o património que os antepassados ergueram com tanta energia e sacrifício. Além do lagar, abundam os exemplos de desperdício material e cultural. Acima de tudo, condói-me a incúria que levou por água abaixo os moinhos que outrora davam vida à ribeira e às aldeias. Que gente a nossa, que só olha para os seus interesses imediatos e para as cidades, onde vão perdendo as suas raízes maiores e a sua identidade mais valiosa e profunda. Ao lembrar-me dos moinhos, imaginei ouvir-te recitar de novo aquele belo poema de Guerra Junqueiro, “A moleirinha”, datado de 1888, que canta a velha moleira e o seu burrico: “Pela estrada plana, toc, toc, toc/Guia o jumentinho uma velhinha errante/ Como vão ligeiros, ambos a reboque/ Antes que anoiteça, toc, toc, toc/ A velhinha atrás, o jumentito adiante…”.           

Ainda quanto ao lagar, que nesta região constitui o último exemplo tecnológico de meados do século passado e que manifestamente caminha para o fim, espero, no âmbito de repetidas promessas, que a Junta de Freguesia das Sarzedas e a Câmara Municipal de Castelo Branco evitem a sua ruína completa e o convertam num museu vivo que preserve o sentido da história e os valores comunitários. Quem apaga o passado, apaga o futuro… Enquanto aguardo por novos motivos de escrita, vou-me entretendo com vivências e episódios primários. Pequenas histórias que “correm mundo” é o que não falta na aldeia. Numa noite de Janeiro, um casal dos Calvos de Cima, dormente a sono solto, nem se apercebeu que os porcos fugiram, talvez guiados pelo instinto de escaparem à matança próxima. Tiveram sorte os donos descuidados porque alguém de volta a casa os encontrou ligeiros, lado a lado, na estrada já perto das Teixugueiras e os fez regressar à furda, com muito trabalho e grande escarcéu, ante o espanto do casal que tardou a aparecer estremunhado e em “trajes de noite”… De outro modo, talvez os corpulentos e lustrosos animais fossem os primeiros a tombar na montaria aos javalis ocorrida na manhã seguinte, servindo de inesperado troféu para caçadores e matilheiros. Tivesse o desfecho sido outro e mais boatos teriam corrido sobre a “ladroagem” pela calada da noite…

Agora que os residentes na aldeia se contam pelos dedos das mãos, de vez em quando parece que ressuscita a plenitude de antigamente graças às revelações da Ti Lúcia, ao redor da fogueira nos serões de Inverno. Mulher muito viva e bonita – apesar da idade e das freimas que a consomem – e uma extraordinária contadora de histórias, que bem merecia aparecer na televisão, leva-nos, em palavras e gestos, para os anos risonhos da juventude. Tempos custosos e duros mas também bastante alegres e divertidos. De história em história, desenrola-se o passado longínquo: as sementeiras, as ceifas, as malhas, as “desinsamarras”, a apanha da azeitona, as feiras e romarias, os namoros, as paixões faladas ou escondidas, os bailaricos e as zaragatas, os pimpões e as beldades de maior escolha. Moças havia que atraíam pretendentes dos “quatro cantos do mundo”. Ela própria – talvez a rapariga mais vistosa da sua geração – teve apaixonados sem conta, embora sem alcançar o “record” muito anterior da encantadora “menina dos catorze” que, apesar de já comprometida, ainda levou a que num baile famoso, lá por 1920, se juntasse aquela caterva de pretendentes, em ambiente de grande rivalidade, segundo as quadras que correram: “Ó menina dos catorze/ Alevante-se e venha ver/ Aqui os tem todos juntos/ Venha agora aqui escolher”. Após este convite ou desafio, logo um mais rufia ripostou, em tom de ameaça: “Haja aí algum pimpão/ Que na rua se atravesse/ Traga a mortalha consigo/ E o confessor que o confesse”. Segundo julgo saber, a beleza e os encantos da “menina dos catorze”, há muito falecida, ainda hoje assomam em parte da sua descendência.                                                              Agora que a aldeia parecia quase “riscada do mapa”, saltou para a ribalta com a moda das bodas no Largo do Forno. Após o badalado casamento da Inês e do Vilela, já outro está anunciado enquanto se aguardam novas marcações e se fazem diversas apostas, uma delas respeitante à Lúcia e ao José Paulo. Não fosse a minha idade e a falta de jeito ou paleio para arranjar namoradas, até eu me apressaria a marcar vez… Agora que a aldeia “está nas borras”, vamo-nos contentando com as pequenas coisas que nos restam, apegados a filosofias simples que não se aprendem na Universidade. Há dias, a prima Lourença, ao avistar-me sentado num muro da Tapada da Eira a fumar um cigarro enquanto me preparava para podar algumas oliveiras, aquedou por momentos as cabrinhas e disparou esta boa sentença: “Ai, primo João, não há nada melhor que estarmos ao sol naquilo que é nosso… Eu já disse aos meus, até que a minha cabeça bata mais ou menos certa não quero nem deixo que me tirem do meu cantinho…”. Mal ela escapou  com o rebanho a caminho da Arraia ou do Lameirão, fiquei a pensar se o Ti Zé Varão, “desterrado” em Almada, já terá esquecido a Tapada Nova e a Ameixoeirinha… Apeteceu-me chorar, enquanto voava baixinho, tão perto de mim, a última cotovia naquela tarde.

 

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