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Digressões Interiores: Atravessámos a ponte

João Lourenço Roque - 05/02/2024 - 12:00

Corre esta crónica de Dezembro a Janeiro. Correm as palavras, tecidas nas mãos e no pensamento. Não eu, que só lentamente caminho.

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Corre esta crónica de Dezembro a Janeiro. Correm as palavras, tecidas nas mãos e no pensamento. Não eu, que só lentamente caminho. Paro mesmo, ao aproximar-me das pontes que atravessam os nossos rios, os nossos anos, as nossas vidas. Hesito na travessia, com medo de ficar a meio e de não alcançar a margem e os sonhos de onde me chamavas. Ninguém aparece, ninguém me diz para onde se dirigiam os romeiros que perdi de vista. Não sei - nem consigo imaginar - de que lado fica o futuro. Então, mais me demoro e viajo no passado que, em boa parte, também é presente e futuro...Ora em Coimbra, ora em Castelo Branco. Ou em Lisboa, sobretudo na Gare do Oriente e no Parque das Nações. Em Coimbra, quase sempre à beira da Universidade. Tantas vezes no Jardim Botânico. Estudos, namoros e paixões, tão breves ou duradouros. Quando saio das minhas rotinas e imagino que lá voltamos, tudo é outono nas folhas que piso e nas recordações que levanto. Parece que nunca ali estivemos e que tudo desapareceu na sombra dos dias longínquos. A partir de Coimbra ou dos Calvos todas as estradas que restam me conduzem a Castelo Branco. Cidade onde me prendo e desprendo, na alma que a cidade tem ou aparenta. Alma de cidade-cidade, acolhedora, moderna, cosmopolita. Alma de cidade-aldeia, em tantos sinais e retalhos anunciada. Nos rebanhos de ovelhas que ladeiam as entradas. Nos gestos e nas conversas dentro de portas. Conversas repetidas e arrastadas, normalmente em alta voz, até aos pontos e aos modos da habitual despedida: "Atão vá, fica com Deus, Váatão...". Em Novembro, por todo o lado se fala das vacinas nas farmácias, da azeitona e dos lagares. Em Dezembro, já com o azeite novo em casa, desata-se o falatório à volta do preço e das encomendas; das prendas para os netinhos, das filhós, dos madeiros, do bacalhau e das couves, do cabrito ou do borrego no Natal.

Ninguém me pergunta, mas pergunto eu a mim próprio, o que mais me tocou e guardei do Natal de 2023. Coisas simples, coisas pequenas, simbólicas, mas tão valiosas no valor afectivo e espiritual que, por enquanto, ainda lhes dou. De entre elas, registo e sublinho: a visita que fiz ao João Mendes, ao João Morgado e à prima Adélia, acolhidos e protegidos pela Misericórdia albicastrense; algumas ofertas do meu azeite novo, fabricado no lagar das Ferrarias; um inesperado e doce presente de mel puro; os chocolates que a Maria Ana, a Piedade e o vizinho inglês me deram; a simpatia e os cuidados que me dispensaram num episódio de urgência hospitalar, especialmente a Drª. Ana Maria Costa; a vela que deixei acesa naquele "altar" da casa do sobrado; a singeleza, a ternura e a comunhão da noite de consoada, em Coimbra; a voz da Sara que de Lisboa me chegou.

Veio 2024. Atravessámos a ponte, entre festejos, esperanças, medos e tragédias. Lembro a Ucrânia; lembro Israel e a Palestina. Crianças e mulheres que choram, crianças e mulheres que morrem. Jovens, tantos jovens, desviados dos sonhos e projectos de vida, atirados para a guerra e para a morte. Grupos terroristas, escondidos ou a descoberto. Violências e ódios fundos renascidos.

Fala-se de paz, reza-se pela paz, mas ninguém consegue travar os negócios das armas e as novas ou velhas ambições imperialistas. Que tempos estes, tão sombrios e perigosos! Que mundo o nosso, tão desordenado e desigual! Lembro a pobreza de tantos pobres. Lembro a dor e a revolta de tantas mulheres oprimidas, em diversos países. Lembro as caminhadas, os infortúnios, os muros e os mares de tantos migrantes, sem eira nem beira. Que falta nos fazem grandes líderes políticos, corajosos, humanistas e inspiradores! Mesmo assim, não desesperemos e não esqueçamos que melhorar o mundo depende de todos nós. Dia a dia, em pequenos e em grandes passos. Em diversos

caminhos, horizontes e exemplos. Sinto o que sinto. Digo o que digo, mais e melhor não sei dizer.

Atravessámos a ponte, suspensa em luzes e nevoeiro. Levantam-se e correm as palavras até caírem no esquecimento.

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SAUDADES/NOSTALGIAS/RECORDAÇÕES, que também comungo. CZ1954/CB1965.