Volto aos arquivos da memória, resumindo mais uma das inúmeras histórias, reais ou imaginárias, que "correram mundo" nas aldeias sarzedenses.
Volto aos arquivos da memória, resumindo mais uma das inúmeras histórias, reais ou imaginárias, que "correram mundo" nas aldeias sarzedenses. Desta vez, num relato que nos atira para os percalços - e tantos eram - da vida rural. Foi o caso daquele bom homem que viu o azar bater-lhe em grande quando, no caminho e na faina em que seguia, o carro se virou, ficando de rodas para o ar e os animais estatelados no chão. Aflito e impaciente por ajuda, apareceu-lhe um rapazote que "teve a lata" de perguntar: "Passa-se alguma coisa?" Irritado ou incrédulo com semelhante pergunta, não se conteve em responder áspero e afogueado: "Passa-se alguma coisa? Atão tu não vês o desastre..." Se fosse hoje, diríamos que felizmente não houve feridos e que a GNR tomou conta da ocorrência...
Naqueles tempos, que aparentemente tão longe ficaram, esta e outras peripécias davam aso a falatórios, "teatros" e risotas. Fosse onde fosse - nos Calvos, nas Teixugueiras, na Nave, na Lomba Chã, no Vale da Sertã e por aí fora - quase sempre a sina de ser apontado e "gozado" calhava aos mais simplórios ou desafortunados. Mas, na roda dos dias e dos anos, a sorte tantas vezes mudava, a pontos de chegar a hora em que alguns dos que mais reinavam se tornarem eles próprios o alvo do gozo e da reinação...Fazia-se justiça, mesmo sem sabermos que justiça era! Então, como hoje ainda acontece, era corrente a inclinação para nos rirmos do "mal", dentro de certos limites. Para não falar só dos outros, apresento-me como exemplo e "vítima" dessas tendências impulsivas e descontroladas. Ainda me lembro daquela vez em que, ao escorregar no lajedo perto do forno, caí de caravelas e desamparado na presença da minha cunhada Otília que ria a bom rir enquanto eu, meio "combalido" e envergonhado, tudo fazia para o mais depressa possível me levantar. Isto terá sido há meia dúzia de anos, quando muito. Ora, poucos dias antes de escrever esta crónica, a cena pouco mudou. Tinha ido a Castelo Branco e, ao encaminhar-me para o carro, estacionado numa praceta, as botas deslizaram no passeio molhado e traiçoeiro, por causa das folhas e das flores caídas, perto das "tílias", e em menos de nada estendi-me ao comprido, felizmente sem grandes mazelas. Não sei se alguém deu conta, mas se viram não se deram à bondade de me socorrer. Mal cheguei aos Calvos, meio atordoado, logo relatei o "desastre". A minha sobrinha Ana Paula, enfermeira distinta, sempre solícita e cuidadosa, prestou-me toda a atenção e quis saber tudo - que dores tinha ou não tinha, que incómodos sentia -, mas, de pergunta em pergunta na demorada consulta, creio que, por mais que tentasse (se é que tentou...), nunca deixou de rir. Em qualquer dos casos, embora algo azedo ou irritado, não levei a mal. No fim de contas, quantas vezes não terei eu feito o mesmo ou ainda pior...
Largo estes episódios e passo a outros "filmes" e sentimentos. Sei - todos sabemos - quão contagiante é, ou pode ser, a alegria, mesmo inesperada e desmedida. Mas confesso que, desde há vários anos a esta parte, mais me chama e contagia a tristeza. Ainda recentemente, numa das esplanadas em que mais me demoro em Coimbra, me senti atraído por uma mulher desconhecida que veio sentar-se numa mesa próxima da minha. Pareceu-me de idade indefinida, mas madura. Mais que bonita, diferente, misteriosa, estranha, interessante. Não me atrevi a pousar nela o meu olhar e o meu desejo, mas, de relance, vislumbrei a tristeza que lhe vagueava nos olhos, no rosto e nas mãos inquietas. Talvez esperasse por alguém que tardava em chegar ou que não atendia o telemóvel. Talvez sentisse a falta do próximo abraço ou o desencanto do último beijo. Nada lhe disse, que poderia eu dizer-lhe, mas bem gostaria de a ter conhecido. Ainda pensei aproximar-me, mas logo desisti de tão arriscada ou inútil tentação. É mais fácil meter conversa com pessoas alegres. As pessoas tristes, mesmo quando a nosso lado, sempre estão ou parecem distantes. Assim corre e não corre a minha vida! De esplanada em esplanada, outras cenas e emoções. Pouco depois deste desencontro, uma tocante surpresa. Fico contente quando encontro pessoas que há muito tempo não via e que ainda me reconhecem e dirigem bons olhares e sorrisos, boas palavras e interrogações...Assim aconteceu, naquela manhã de domingo, 11 de Junho, numa esplanada de Celas, que outrora habitualmente frequentava, ao cruzar-me com duas distintas dirigentes dos serviços universitários. Momento breve mas tão marcante que me arrastou para tantos momentos e sensações daquele passado em que a Universidade - a "boa e velha universidade" - representava o meu mundo principal, naqueles tempos em que éramos jovens e atrevidos e nos julgávamos felizes.
Regresso, sem pressas, à esplanada anterior, onde passo e deixo grande parte dos meus dias, quase sempre na mesma mesa. Observo quem vem e quem vai. Através dos outros, observo-me a mim próprio. Escrevo, ou leio revistas e jornais. E alguns livros admiráveis, entre eles “Dez Horas de Memória” e "Rua do Almada e outros contos" de Jorge Fragoso. Assim levo a vida, assim a vida me leva! Em Coimbra mais me lembro de Castelo Branco e das longínquas e doces manhãs em que cantavas, talvez com vontade de chorar: "Senhora do Almurtão/ para lá vou eu andando/ minha alma já lá está/ meu coração vai chegando...".