Este site utiliza cookies. Ao continuar a navegar no nosso website está a consentir a utilização de cookies. Saiba mais

Digressões interiores: Ninguém acode...ninguém assoma

João Lourenço Roque - 06/03/2024 - 12:01

Dizem-me, ou vejo no calendário, que é domingo, 21 ou 28 de Janeiro, tanto faz. Gosto pouco do mês de Janeiro.

Partilhar:

Dizem-me, ou vejo no calendário, que é domingo, 21 ou 28 de Janeiro, tanto faz. Gosto pouco do mês de Janeiro. Quase sempre frio e parado, salvo nos primeiros vislumbres da primavera. Ainda não há tortulhos e escasseiam as fainas e as pressas agrícolas. No campo, nem sei que fazer.

Entretenho-me, aqui e ali, a podar algumas árvores ou a arrancar o mato às oliveiras perto do rio, antes que o mato tome conta delas. Andei nisto dias a fio quase sem descanso, a não ser nas horas de merendar ou quando os meus olhos se perdiam na rama das oliveiras e nas encostas em que poderias surgir. É domingo, repito. Lembrei-me dos domingos de antigamente, em que tinha que preparar as aulas de segunda-feira. Bons eram os sábados que permitiam preguiças, convívios e prazeres diversos. Perturbam-me e inquietam-me os domingos. Por mais voltas que dê, não sei como preenche-los. Na aldeia, tirando as missas na igreja matriz ou acompanhadas pela televisão, tudo é ou parece esconderijo, desalento e tédio. Salvo, se em qualquer estrada ou caminho nos cruzarmos com ingleses e outros estrangeiros, sempre gentis e comunicativos em palavras (ou meias palavras), sorrisos e acenos breves ou alongados. Na cidade, maior é, ou parece ser, o deserto. Faltam a vida e os encontros de rua, fecham quiosques, restaurantes e cafés. Faltam as pessoas e as conversas do costume. Escondem-se em casa e nas terras de origem ou atropelam-se nos centros comerciais.

Raramente aparecem nas praças e nos jardins, a não ser para passear os cães.

É domingo e eu em Coimbra. Não sei que faça, ainda mais transtornado desde que fechou a pastelaria mildoce. De manhã fui a Celas buscar o nosso almoço e meia dúzia de queijadas. De tarde, meti-me a escrever enquanto lidavas no computador. Em cima da mesa da escrita, aquele livro, focado no rio Tejo, que recentemente me ofereceram: Rio abaixo, o Comandante. Desde a instrução primária que gosto do rio Tejo, sem esquecer o Douro e o Guadiana. Do Mondego também gostava, mas já não gosto, por razões fundas e escuras...Depois da escola, em diversas marés e passagens da minha vida, tantas vezes também eu "rio abaixo, rio acima", no pensamento ou no comboio da Beira Baixa... Agora, só saudades daquele rio que leva até ao mar de Lisboa as águas do nosso rio Ocreza e tantas histórias e lembranças deste rio da nossa infância, da nossa alma. Lembras-te, ainda, da peguia em que aprendemos a nadar, ou das lindas e estouvadas pastoras que nadavam nuas ou vestidas? E das cheias medonhas que cobriam os moinhos? Avolumam-se as mágoas, os mistérios e as memórias que aquelas águas esquecidas agora em mim despertam numa torrente de recordações passadas e futuras. De modo real ou imaginário, afasto-me do mundo de hoje e volto às palavras e às margens da nossa história e da nossa identidade. Sempre sozinho - mas sempre contigo... -, meto-me pelo vale do rio Ocreza, à procura das marcas, das pegadas e dos símbolos dos nossos antepassados longínquos, iguais ou semelhantes às gravuras rupestres já descobertas. De tão longe viemos, na espessura e na lentidão do tempo lento. Milénios de vidas nómadas e primitivas, sustentadas na caça, na pesca e nos frutos silvestres, até nos tornarmos nos camponeses que seríamos durante séculos. Ontem - ou quase ontem -, ainda era este o "nosso mundo", agora prestes a desaparecer ou já inteiramente desaparecido. Quem diria que alguns de nós se tornariam "letrados"! Quando puder, hei-de falar-te do livro do Doutor Manuel Leitão sobre os Vilares de Baixo...Das nossas vidas de pastores e agricultores ainda falam alfaias e engenhos diversos, abandonados em qualquer canto. Mais ainda, as ruínas de moinhos seculares, de que tantas vezes falei e que as entidades locais e regionais não quiseram ou não souberam preservar. Tão mudado vai ou ficou o rio da nossa infância! Rio de aflições, amores e contentamentos. Já não adianta esperar por batéis, nem gritar por moleiros e pastores. Ninguém assoma, ninguém acode...Era domingo, folheei livros, alegrias e tristezas, acompanhado de boa música no gira-discos. Espreitei o sol e o sossego nas varandas da tarde sossegada. Era domingo...

Tocavam os sinos, a despertar as almas e as manhãs sagradas. Na luz dos teus olhos corriam promessas, segredos e devoções sem fim. Domingos de ontem, domingos que já morreram. Histórias que ninguém conta.

COMENTÁRIOS

JMarques
Mês passado
Parece que com o acumular das primaveras, a saudade e a nostalgia atacam mais, também sofro dessas "maleitas".