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Digressões Interiores: Vilares de Baixo - terra vossa, terra minha.

João Lourenço Roque - 28/03/2024 - 15:00

Dou grande valor à história local e regional que pode abarcar uma enorme diversidade de temas e territórios.

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Dou grande valor à história local e regional que pode abarcar uma enorme diversidade de temas e territórios, nomeadamente demografia, vida económica e social, migrações, quotidianos rurais e urbanos, poderes e instituições, biografias, culturas e mentalidades. E tantos outros, e tantos mais. Todavia, não faltam historiadores e académicos que a olham com desdém e sobranceria, qualificando-a de "petite histoire". Esquecem, ou fingem esquecer, que é a partir destas bases e teias que ascendemos aos cenários e dimensões da "história grande" e da "história total".

Se leste a crónica do mês de Fevereiro por certo deste conta da minha admiração, genuína ou fictícia, pelo facto de, no quadro tradicional da nossa "civilização" de pastores e camponeses, alguns de nós chegarem a "letrados". Exagero meu ou ligeireza minha, confesso agora, ao espantar-me sem razões de espanto. Historiador fui, durante décadas, e bem sei as voltas que a história e a vida dão. Aliás, tantos letrados por aqui já houve e conheci, mesmo com poucas ou nenhumas "letras" mas com admirável sabedoria. Agora, falo de outros, bem modernos e diferentes. Letradas de primeira linha são as pessoas amigas e bondosas que regularmente - sempre num dia certo, misturado de tantas incertezas - me enviam mensagens poéticas e filosóficas como esta: "Os ramos baloiçam à orientação do vento...Tocam uns nos outros em movimentos, ora lentos ora muito rápidos. De quando em vez quedam-se, esperando pela oportunidade de voltarem a agitar-se. É assim, nesta permanente intermitência que tudo, nas nossa vidas, acontece...Diz-se que tudo faz falta. Não sei. Mas que existe sim. Isso eu sinto. Tal como este imperativo de enviar um abraço, de cada um de nós, daqui para aí". Nunca sei o que dizer a este casal amigo, mas julgo que no pouco que lhes digo entenderão quanto aprecio a sua ajuda sentimental e a sua aproximação aos meus silêncios e atribulações. Volto à história local. Letrado é o Doutor Manuel Leitão que vivamente felicito pelo seu labor científico e pelo espírito de comunidade. Além da sua já longa e valiosa entrega à arqueologia, brindou-nos recentemente com um livro, bastante original e interessante, sobre uma pequena, mas famosa, comunidade rural: Vilares de Baixo nos Registos Paroquiais de 1810 a 1910. Retrato de Gerações. Natural de Castelo Branco, esta não era a sua terra mas terra sua se tornou pelos laços do matrimónio. O amor tem destas coisas, por acasos ou destino abre portas desconhecidas e cruza as vidas com a história e a cultura. Estive na apresentação do livro, a 27 de Janeiro, no Salão da Junta de Freguesia de Sarzedas. Uma tarde que foi um momento, um momento bom e especial. Ainda fui citado no belo discurso da Presidente da Junta, Drª. Celeste Rodrigues. Na multidão presente, sobressaíam os "vilarenses". Gratos por esta "prenda" que mais nome e proveito acrescentou à sua aldeia e à nossa freguesia. Orgulhosos por verem a sua terra - terra de bons ares e de mulheres bonitas - na capa e nas páginas de um livro. No último capítulo da sessão, todos - ou quase todos - os que ali vieram se apressaram a adquirir o livro, antes que esgotasse, esperando depois a sua vez na hora e no frenesim dos "autógrafos"...À saída levavam nas mãos aquele "tesouro" histórico e afectivo. Tesouro fechado e enigmático. Quando o abrirem e decifrarem, hão-de descobrir raízes e ramos desconhecidos, ampliar o bilhete de identidade e compor ou retocar o "retrato de família". Sou e sempre fui dos Calvos, mas também dos Vilares de Baixo e de outras terras. Já percorri demoradamente o livro. Lá encontrei, como esperava, o meu avô materno - que não conheci e de quem herdei o nome João -, os seus pais e avós. Ressalvando possíveis erros ou confusões, também me "apareceram" irmãos e irmãs, ambas de nome Maria e que tão pouco viveram: a primeira morreu aos seis meses, a segunda aos dez dias...Tristezas de mais entristecer, mas algo frequentes naquela época em que ainda persistiam elevadas taxas de mortalidade infantil. Desde pequeno que gosto daquela terra, terra vossa, terra minha...Quando me falam dos Vilares de Baixo, lembram-me as bodas a que fui com os meus pais e o meu irmão e revejo tantas coisas e pessoas. Sobretudo a bondosa tia Adelaide, irmã da minha mãe, que também foi casar em "terra alheia"...

Arrumei os livros e as saudades nas estantes e na alma e corri aos tortulhos. Ninguém imagina as passadas que dou, na orla e nas pequenas clareiras dos matagais, à procura daquelas maravilhas da natureza. Falo, bem entendido, dos "tortulhos de gente"...Gosto de os comer, confeccionados de várias maneiras pela "chefe" Otília. Sabem melhor se levam poejos. Gosto ainda mais de os repartir, especialmente com quem já não pode ou não sabe ir a eles...Todos reconhecem que não espero, nem quero nada em troca. Mas, entre espantos, lamentações e alegrias, lá vêm sempre as mesmas ladainhas: ó primo mas eu mereço isto?..., ó primo eu posso pagar-lhos..., talvez queira uma couve, um frasco de mel ou umas laranjas..., deixe-me oferecer-lhe o café..., quer uma garrafa de aguardente olhe que é gostosa e forte..., eu dava-lhe uma garrafa de vinho mas este ano não me calhou como nos mais anos..., aceite uma dúzia de ovos..., tome lá um pão caseiro..., ou um saco de filhós acabadinhas de fazer…, eu dava-lhe alguma coisa mas já não presto para nada nem sei o que possa dar-lhe... Gente boa, conversas antigas e simples. Depois destes e de outros modos, finalmente todos encontram e repetem a melhor forma de agradecer: Seja pela alma de quem lá tem... Seja, respondo eu. E logo me afasto pensativo, sem saber em que pensar...Baloiçam os meus passos e as papoilas, ao sabor do vento.

COMENTÁRIOS

JMarques
Na semana passada
Os que olham com desdém e sobranceria são "pequena gente" .
Como me revejo nos tortulhos, nas filhós, nas papoilas ao sabor do vento e no sabor do mesmo.