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José Freitas Silva: Homenagem a um Amigo distante

J. M. Soares de Barcelos - 24/03/2016 - 10:30

Em 1991 saí de Castelo Branco, mas mantivemos sempre correspondência frequente, com troca dos nossos artigos publicados nos jornais e com ‘cartas’, como antigamente muita gente fazia. As dele vinham escritas à máquina, porque ele sempre foi adverso aos computadores.

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Mais um grande amigo partiu, desta vez inesperadamente.
Tendo eu nascido na mesma ilha e sendo da mesma geração, só tive contactos com o Dr. José de Freitas Silva quando cumpri o Serviço Médico à Periferia, o ano que todos os médicos, logo a seguir ao estágio, eram obrigados a fazer na periferia das cidades. Tal como ele, fiz esse Serviço no concelho de Idanha-a-Nova e, por mero acaso, nos mesmos Postos Médicos, a Aldeia de Santa Margarida e o Ladoeiro.
Folheando os processos, logo me apercebi da qualidade dos seus registos e dos hábeis diagnósticos e terapêuticas efetuados. Nisso, aprendi muito com aquele que sempre considerei um dos melhores médicos de Clínica Geral que conhecera. Mais tarde, tive oportunidade de conviver bastante com ele, pois fazíamos juntos semanalmente um ‘serviço de urgência’, o que se manteve durante alguns anos.
Em 1991 saí de Castelo Branco, mas mantivemos sempre correspondência frequente, com troca dos nossos artigos publicados nos jornais e com ‘cartas’, como antigamente muita gente fazia. As dele vinham escritas à máquina, porque ele sempre foi adverso aos computadores.
Era um homem culto e escrevia bem. Certo dia, numa das cartas recebidas, enviou-me uma lista de expressões populares da nossa Ilha, que ele fizera, em meia dúzia de páginas, expressões essas que ainda conservava na memória. Seriam para entregá-las à filha Marta, para que ela, nas férias que passasse nas Flores, entendesse melhor os falares da Ilha.
Achei tanta piada àquilo que fiz o mesmo e, a certa altura, já eram dezenas de expressões só lá usadas. Com o tempo, do fundo da memória foram emergindo cada vez mais.
Entretanto, juntou-se a nós um amigo comum, o Dr. Horácio Flores, também médico e florentino, que trabalhou como cirurgião no Hospital de Beja, do qual foi diretor durante muitos anos, e que, como o José, era também de elevada cultura, tendo mesmo sido diretor do Jornal do Alentejo. Sendo de uma geração anterior à nossa, conseguia recordar-se de expressões que nunca tínhamos sequer ouvido. Assim, o trabalho cresceu e acabou por ser publicado, num livrinho com 106 páginas a que demos o nome de Falas da Ilha das Flores – Vocabulário Regional. No seu prefácio pode ler-se: “Este trabalho é baseado numa recolha iniciada em parceria com José do Espírito Santo Câmara de Freitas Silva e Horácio Carvalho Flores, longe da Ilha, apenas num esforço conjunto de memória duma infância já distante […] Pelo referido, consideramo-los coautores deste trabalho.”
Pois, foi o Dr. José de Freitas Silva que me impregnou o gosto pelos falares populares. Em 2008 publiquei o Dicionário de Falares dos Açores (expressões de todas as ilhas deste arquipélago, com prefácio do escritor Cristóvão de Aguiar), um livro já com 615 páginas, e no ano seguinte escrevi outro livro em que juntei o conteúdo do livrinho das Flores com a tese de Doutoramento do Prof. João Saramago, natural da Ilha do Corvo, meu amigo desde os tempos do Liceu, que fez uma pesquisa demorada sobre os falares de sua Ilha, e que teve a amabilidade de, para este livro, elaborar o prefácio. Demos-lhe o nome de Falares do Outro Arquipélago — Flores e Corvo.
Passados uns anos, a pedido de um colega madeirense, dediquei-me ao estudo dos falares do Arquipélago da Madeira, do que resultou um trabalho semelhante ao dos Açores, prefaciado por uma linguista da Universidade da Madeira, e que a Secretaria da Cultura dessa Ilha vai publicar em breve.
Tudo isso devo àquele que, certo dia, apenas por curiosidade e afeto, partilhou comigo aquela meia dúzia de folhas com expressões da Ilha distante.
O Dr. Freitas era um homem bom, inteligente, trabalhador e amigo do seu amigo. Estou-lhe grato por ter-me um dia considerado um dos seus amigos mais chegados.
Ultimamente, devido às vicissitudes da vida, perdeu muito a alegria de viver e nunca mais contactámos. Apenas por amigos ia sabendo o que se passava com ele, e foram esses mesmos amigos que enviaram a triste notícia que me abalou tão profundamente. 
Se, em relação à nossa amizade, já estávamos tristes e sozinhos, agora estamos muito mais.
À sua família os meus sentidos pêsames.

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