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Leitores: O Fazer de Cargaleiro. Um agradável encontro

António Melo - 26/05/2022 - 9:40

"O que eu procuro é ver!” – tão fácil de dizer e raro de acontecer."

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O que eu procuro é ver!” – tão fácil de dizer e raro de acontecer.
A afirmação pertence a mestre Cargaleiro, que assim se define logo no início do doc que sobre ele realizou a equipa do Clara Amarela, argumento de Luís Filipe Borges, e a RTP2 difundiu no passado 19 de maio (e poderá ser visto e revisto no próximo dia 29, entre noite e madrugada, à 1h05).
A simplicidade da realização explica certamente o agrado com que se vê este retrato de corpo inteiro do artista que, sublinha o filme, mais se internacionalizou entre os portugueses, lado a lado com Mª Helena Vieira da Silva e Paula Rego. Coisa difícil é encontrar a simplicidade. Ricardo Clara Couto, que já nos revelara José-Augusto França, mostra que é possível entrar no interior da mente de um artista, sem o ferir, e de lá retirar o que faz o espírito da obra.
O documentário está repleto de assertivas frases, que parecem contradizer-se aqui e além, quando acompanham as cerâmicas e pinturas que ilustram a narrativa, mas na realidade são peças do puzzle que é Manuel Cargaleiro e o autor do filme, com ternura, foi assentando, até revelar o mestre e o seu saber.
“O azul é introspeção?” questiona o realizador em off, e de chofre logo o artista diz que sim, que é com o azul que começa a obra, para logo de seguida se retrair e se lançar num elogio da cor – seja vermelha, seja… verde, que é a cor da vida, da natureza. Enfim, a cor em todo o seu esplendor como ela se espraia na Primavera, nos vestidos femininos que se passeiam nos cais de Paris.
A conversa decorre fácil e fluente e o artista desvenda-se em diálogos que o revelam. Aquela porta, por exemplo, que abre realmente o átrio do museu Cargaleiro de Castelo Branco – sim que há outros na Itália e no Seixal – significa o processo de ver e de realizar a obra. Ruína com séculos de tempo impregnado, aquelas tábuas significavam outrora a porta de casa humilde, algures numa aldeia beirã. Renasceram na mão de Manuel Cargaleiro e lá estão hoje vibrando entre azul e vermelho, verde e amarelo, enfim, encerrando para quem as olha uma “mensagem de esperança, uma mensagem de felicidade”. É assim que o biografado quer que quem o vê nas duas dimensões do quadro, ou no azulejo do painel o receba – um mensageiro de boa nova.
Numa tocante cena, filmada em Vietri sul Mare, cidade da costa amalfitana, onde Cargaleiro foi consagrado italiano pela arte, sede da Fondazione Museo Artistico Industriale Manuel Cargaleiro, o chefe da oficina olha sobre o ombro do artista para a peça de cerâmica que este, sentado, executa. O enquadramento é feliz, pois vê-se nele uma atitude quase paternal da parte do mestre operário para com o mestre artista. A camara apanha quase como em confidência a afirmação: “Encontro finalmente o pintor que pinta com o coração”.
Um apontamento a significar que a obra e vida de Manuel Cargaleiro não se esgota aqui. Falta, talvez, uma visita guiada a Vietri, a partir de Chão das Servas, berço do artista, solo rude e rugoso de musgo e pedras, onde se formou a visão em patchwork da natureza, que é a imagem de marca do artista. 
António Melo 

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