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Recordar Fernando Namora (1919-1989): Um médico de rosto humano

Florentino Beirão - 03/10/2019 - 9:39

Há cem anos, nascia em 15 de abril de 1919 em Condeixa, pertinho da antiga e opulenta cidade romana de Conímbriga, o menino Fernando Namora, filho de comerciantes. A morar a dois passos da cidade dos doutores, chegado à idade de prosseguir estudos, escolheu velha Coimbra para estudar medicina. Depois de ter exercido a sua profissão largos anos, Fernando Namora veio a falecer, em 31.01.1989, aos 70 anos.
Terminado o longo curso de medicina, foi colocado a exercer a sua atividade clínica, na típica aldeia medieval de Monsanto da Beira. Posteriormente, vamos encontrar este médico noutra pequena aldeia da Beira, em Tinalhas, onde também exerceu a sua atividade clínica. Desta sua permanência em terras beirãs, no interior do país, deixou-nos dois belíssimos livros, onde retrata as gentes destas pequenas aldeias e da região. Numa destas obras, “Retalhos da Vida de um Médico”, escrito em 1949, relata-nos, como novato médico de aldeia, a sua relação humanista com a população pobre, supersticiosa e analfabeta de Monsanto. Esta povoação, pela sua originalidade e beleza, é classificada como “Aldeia Histórica”. Geograficamente, encontra-se derramada entre graníticas penedias, recebendo de Fernando Namora a denominação de “A Nave de Pedra”. Recorde-se que esta aldeia medieval ostenta o galardão do “Galo de Prata” colocado numa torre, ofertado do Estado Novo, como testemunho de ter sido eleita num concurso nacional a “ Aldeia mais Portuguesa” em 04.02.1939. Uma iniciativa do nacional- salazarista António Ferro.
Destes tempos, na referida obra sobre Monsanto, logo na sua abertura, Fernando Namora escreveu. “ Com 24 anos medrosos e um diploma de médico, tinha começado a minha vida em Monsanto. Ali, a província bravia despede-se da campina (de Idanha), ergue-se nos degraus das fragas para olhar com altivez as serras de Espanha, enquanto o friso de planaltos que corre as linhas da fronteira espreita as surtidas do contrabando e a fuga dos rios (…) os camponeses vinham ao consultório fechados em meias palavras, avaliando dos meus dotes de mágico, e nas suas faces obstinadas havia apenas desconfiança e desafio”. E mais adiante: “essa gente granítica com os ossos a esticarem a pele morena, esperava de mim, como esperara e exigira do antigo médico, antes de o aceitar, a prova indiscutível que decidisse da minha reputação: um parto, por exemplo, com o seu assombroso mistério, nas suas horas de mortificada expectativa”.
A propósito deste livro, o escritor espanhol, Gregório Marañon escreveu: “ Namora, é, na vida intelectual de hoje, apesar da sua juventude, um dos mais destacados entre os numerosos médicos que são grandes escritores. No livro “Retalhos da Vida de um Médico” dá-nos conta da sua personalidade literária, forte, um tanto amarga na aparência, mas no fundo otimista, porque humanista”.
Quanto à sua permanência na aldeia de Tinalhas, a dois passos de Castelo Branco, onde também exerceu a medicina, ficou para memória futura outro inspirado livro “Casa da Malta” dado à luz no ano de 1945.
Médico, romancista, poeta e cronista, Namora é, segundo a crítica, “um dos escritores portugueses contemporâneos que mais se evidencia pelo tom profundamente humano de todas as suas obras”. Certamente, Namora não desenharia assumir como sua, uma lapidar frase de Cícero, filósofo e orador romano, quando afirmou que “ em nada o Homem se aproxima mais dos deuses, do que em dar saúde a outros homens”.
Os seus romances, literariamente, inserem-se no estilo neorrealista da década de 40 do séc. XX, onde, na sua vasta e multifacetada obra, não se limitou a retratar a realidade, mas a sugerir caminhos, para ela ser transformada para melhor. Como Namora afirmou um dia: “ não se escreve para reproduzir a realidade, mas escreve-se para a transformar”.
A sua obra foi de tal modo reconhecida, ainda durante a sua vida, que mereceu uma vasta difusão internacional. Só seria suplantada por Ferreira de Castro e, mais tarde, por José Saramago. O nosso Nobel da Literatura, no ano da morte de Namora disse que “a sua morte surge num momento em que a cultura portuguesa, em particular na sua expressão literária, é reconhecida internacionalmente como das mais interessantes e originais do mundo atual. Namora já entrou para a história da cultura portuguesa, mas também a sua bondade e a sua generosidade permanecerão na nossa lembrança, como lição de luminosa humanidade”.

florentinobeirao@hotmail.com

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