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Digressões Interiores: Uma rosa só para ti…

João Lourenço Roque - 30/06/2016 - 12:18

Entristecem-me as fontes abandonadas que já ninguém procura ou sabe onde ficam. Mataram a sede a tanta gente, ouviram conversas e segredos que davam um romance.

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Entristecem-me as fontes abandonadas que já ninguém procura ou sabe onde ficam. Mataram a sede a tanta gente, ouviram conversas e segredos que davam um romance. Algumas até secaram, perdidas no esquecimento ou desgostosas de só verem bichos e matagais. Outras ainda esperam por algum pastor ou eremita sequioso de águas puras, de águas bíblicas. Lembrei-me disso quando casualmente passei pela fonte do Ti Zé Varão, na Barroca da Anavinha. Ainda limpa, ajoelhei-me como se estivesse em território sagrado e bebi docemente como quem beija a última namorada. Para o resto do caminho, levei uma garrafa cheia como quem leva o maior tesouro. Lembrei-me disso e de muito mais em tantas outras andanças em que voltavam à memória aquelas fontes aonde em criança os meus pais me mandavam buscar água enquanto arduamente ceifavam o trigo doirado que alegrava as nossas vidas. Entre outras, recordo com muita saudade as fontes das Macieiras e do Lagoeiro. Quem me dera ir procurá-las contigo, beber das mesmas águas e ouvir-te cantar as paixões que em ti corriam. 
Enquanto puder caminharei sem fim, até me perder nos pensamentos que carrego e semeio. Vezes sem conta vou à Barroca do Cavalo. Seja para espairecer na contemplação daquelas paisagens surpreendentes. Seja para cuidar das oliveiras que os meus pais ali plantaram e de que tanto gosto. Andei por lá, três dias a fio, no Inverno passado, a livrá-las do mato, certamente com grande estranheza e reprovação das pessoas da aldeia que, agarradas a preconceitos idiotas, devem achar que não fica bem a um “Doutor da Universidade” regressar às suas melhores origens, fazer de trabalhador e “sujar” as mãos na terra a cuidar daquilo que é seu. Ao longo desses breves dias, banhados de sol luminoso, não avistei ninguém. Num raio de muitos quilómetros, a não ser eu, ninguém existia, ninguém sonhava, ninguém vivia. Lá ao fundo o rio corria indiferente e misterioso. Ao som das águas tranquilas ou agitadas juntava-se o canto das aves, solitárias ou em bandos, aves livres e descuidadas, tão livres que nem sabem o que é a liberdade. Numa das tardes, por longos momentos, desceu sobre mim um pesadelo aterrador, um pesadelo terreno e espiritual. Ali, onde sempre me pareceu que o mundo começou e acaba, ali onde tenho vivido sonhos lindos e inesquecíveis. De repente, enquanto merendava, envolveu-me uma solidão tão profunda e cerrada que nem sei contar-te. Senti-me como se fosse o último ser humano à face da terra. Para sempre só, perdido e abandonado, ao fim de muitos séculos. Assustei-me como nunca me acontecera ou imaginava, mas logo serenei quando me pareceu ouvir alguns passos e vozes conhecidas e desconhecidas que soltavam boas palavras. Vozes aparentemente estranhas e longínquas, mas tranquilizadoras e familiares porque vinham e soavam dentro de mim. 
Regressei a casa contente pelo trabalho feito e por sentir de novo que, fosse onde fosse, alguém ainda caminhava a meu lado ou esperava por mim. O medo deixei-o para trás, escondido na noite que já caía ou relampejava lá para as bandas do rio Ocreza. Este ano a safra dos tortulhos foi abundante e de grande qualidade. 
Tenho pena de não ter fotografado alguns exemplares, tão belos e vistosos, que bem mereciam figurar no “Reconquista” ou num álbum de maravilhas da natureza. Sinto a falta daquele pisco, sempre à minha volta, à procura de companhia e de alimento nas estevas da Barreira Alta. Além de inúmeras e repetidas ofertas, aventurei-me na comercialização através de vários postos de venda à beira da estrada e às portas da cidade de Castelo Branco. Não tive problemas com a clientela, embora alguns levassem tempos infinitos a cheirar os tortulhos, a perguntar pelo cuco da ribeira e a abrir os cordões à bolsa.
Tive algumas chatices com os fiscais da Câmara que pretendiam refugar-me a “romana” e obrigar-me a adquirir uma balança eletrónica. Na corrida a um grande mercado universitário ainda pensei requerer ao Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra autorização para montar uma banca à porta da Faculdade de Letras, mas afastei a ideia, presumindo que arranjaria grandes arrelias com a “estudantada”, sempre pronta a pregar partidas, e com os professores, muito habituados a regatear e a desfazer nos artigos, na mira de levarem a mercadoria por tuta e meia. O mais certo seria ficar mal visto e sair de lá “depenado”. Aposta ganha foram as vendas “on line” que me renderam bom dinheiro e frutuosos contactos. Futuramente, apesar da idade avançada e da aversão a burocracias, ainda gostaria de abalançar-me na criação de uma grande empresa neste ramo e também no ramo dos limões, cotada na bolsa e mais dirigida para a “exportação” para a zona de Almada e para as comunidades de beirões espalhadas pelo mundo fora. Seria bom instalar uma sucursal em Cacilhas, à saída dos barcos.
Longe daqui, longe deste pequeno mundo tranquilo e abrigado, o terror e o fanatismo continuam à solta. Recordo Paris, Bruxelas e muitas outras capitais, tantas vezes esquecidas, por esse mundo além. Pergunto, sem perguntar: o que é feito das cidades, espaços de liberdade e berços de civilização…
Lembrei-me de ti no “Domingo de Ramos” na vila de Sarzedas. Adorei o pão de trigo, as boroas de mel e as tigeladas da Páscoa. Chegou a Primavera, nas cerejeiras, nos teus olhos, nos rosmaninhos. Minguam as noites, crescem os dias e os desejos no corpo e na alma. Os melros, as rolas, os tentilhões e as cotovias cantam e cuidam dos ninhos. Floriram as roseiras e o alecrim no quintal do João Filipe. Guardo uma rosa só para ti, na romaria de São Domingos.

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